Com Brad Pitt, o filme de ação mais divertido e explosivo dos últimos anos está na Netflix — e você vai querer ver duas vezes Divulgação / Columbia Pictures

Com Brad Pitt, o filme de ação mais divertido e explosivo dos últimos anos está na Netflix — e você vai querer ver duas vezes

Um trem de alta velocidade atravessa o Japão enquanto diversos assassinos seguem rotas paralelas que convergem para uma maleta e para acertos de contas longamente adiados. Entre eles, um profissional relutante aceita uma missão simples e pretende executá-la sem violência, mas a presença de rivais, parceiros desconfiados e chefes vingativos transforma o corredor estreito em campo de perseguições, golpes improvisados e mal-entendidos que se multiplicam a cada parada. Em “Trem-Bala”, estrelado por Brad Pitt, Aaron Taylor-Johnson, Brian Tyree Henry, Joey King e outros nomes populares, dirigido por David Leitch, a sucessão de incidentes expõe a lógica interna de um ecossistema onde azar e oportunidade mudam de lugar em segundos. Trata-se de adaptação do romance “Maria Beetle”, de Kōtarō Isaka, que usa humor negro para comentar sobre acaso e responsabilidade pessoal.

Leitch aproveita o cenário confinado para criar variações de conflito sem recorrer a excesso de grandiloquência. A cada vagão, as regras mudam ligeiramente: o espaço fica mais apertado, surge um novo obstáculo, a vigilância aumenta. O diretor valoriza a fisicalidade dos corpos em movimento, respeitando pesos, impactos e pausas, recurso potencializado por coreografias que privilegiam objetos cotidianos e interrupções inesperadas. A fotografia de superfícies brilhantes e painéis iluminados reforça a sensação de velocidade constante, enquanto os cortes preservam legibilidade dos movimentos. O humor nasce de contratempos e da insistência dos personagens em planejar o que o trem insiste em frustrar, fator que mantém o enredo em combustão até a chegada às últimas estações.

Brad Pitt adota um registro desarmado, quase zen, que contrasta com a profissão do personagem. O efeito cômico aparece quando gentilezas e frases de autoajuda esbarram em golpes, quedas e portas automáticas, sinalizando um pendor para a conciliação que raramente encontra aderência. Aaron Taylor-Johnson e Brian Tyree Henry formam uma dupla calcada em lealdade e provocações, trazendo uma dinâmica de parceria que fornece contraponto ao protagonista e amplia o alcance das piadas verbais. Joey King acrescenta cálculo e aparência frágil a um jogo de manipulação voltado para o controle da narrativa interna do crime. O conjunto funciona pela fricção entre crenças e interesses, já que ninguém confia plenamente em ninguém e cada pista vale tanto quanto a mentira anterior.

O texto de Zak Olkewicz adapta o livro de Kōtarō Isaka com gosto por coincidências, mas evita reduzir o andamento a mero acaso sem consequências. O encadeamento de pequenos gestos produz reações em cadeia que afetam a sobrevivência de todos, abrindo margem para comentários espirituosos sobre carma, destino e azar. As digressões escolhidas, em formato de flashbacks e anotações rápidas, mantêm o público informado sobre dívidas antigas e promessas quebradas, sem imobilizar o trem nem explicar em excesso os motivos de cada embate. O tom permanece leve, mesmo quando a violência escala, porque as decisões partem de limitações humanas e de falhas de cálculo que soam plausíveis dentro daquele microcosmo.

A direção de Leitch privilegia clareza espacial. Lutas em corredores estreitos tendem a virar confusão visual, mas aqui os enquadramentos buscam eixos reconhecíveis, priorizando linhas do vagão e entradas de luz. O som trabalha pancadas secas e interrupções mecânicas, reforçando a presença do trem como elemento ativo, que propõe ritmos e impõe cortes. A trilha pinça canções pop e temas tradicionais para criar contrastes irônicos, sem sobrepor a ação. O resultado conserva identidade pop, não apenas pela paleta brilhante, mas por uma coleção de signos reconhecíveis que incluem adesivos, pelúcias e sinalizações digitais, sempre a serviço da personalidade dos personagens.

Há espaço para impasses morais, mesmo em uma comédia de ação. O protagonista tenta reduzir danos e fugir de padrões antigos, movimento que confronta um universo alimentado por ressentimentos e hierarquias. Outros personagens acreditam na lealdade como valor central, ainda que a prática mostre fissuras. As ambições se chocam com códigos particulares do submundo, e o trem compressa esses atritos, encurtando caminhos e acelerando consequências. Em vez de discursos programáticos, o filme aposta em escolhas práticas e em resultados imediatos, o que favorece um comentário sobre responsabilidade e acaso em ambientes de pressão.

O desenho dos antagonismos evita vilões monolíticos. Cada figura chega com traços de humanidade que explicam decisões, sem pedir absolvição. Uma herança de perdas motiva um arco de vingança, enquanto um senso de dever cego sustenta execuções frias. Em paralelo, há quem interprete sinais do mundo como mensagens de sorte, encaixando encontros aleatórios em esquemas morais que prometem alguma ordem. Esse mosaico de crenças colide em alta velocidade, e o trem funciona como campo de teste para teorias pessoais, mais do que arena para demonstrações de invencibilidade.

Do ponto de vista visual, a produção prefere nitidez a virtuosismo gratuito. A câmera se mantém próxima das ações e só se afasta para contextualizar corredores, bancos e compartimentos. Pequenas variações de foco destacam objetos relevantes sem didatismo. Os efeitos práticos respondem com credibilidade e ajudam a sustentar quedas, choques e destruições pontuais. Quando a computação gráfica entra, o faz para ampliar riscos e velocidade, preservando o recorte humorado que impede a violência de se tornar pesada demais para o tom proposto. O trem permanece como personagem silencioso, ditando horários, curvas e paradas obrigatórias que interferem no destino dos passageiros.

O elenco de apoio reforça a coesão cômica do projeto. Participações breves acrescentam surpresas e modulam expectativas, abrindo espaço para mudanças de rota que justificam novas alianças e reconfigurações de poder. As falas circulam com cadência musical, e os atores se beneficiam de trocas que exploram sotaques, manias e obsessões. Essa variedade mantém o interesse mesmo quando a busca pela maleta se repete, porque cada tentativa vem acompanhada de um princípio diferente de persuasão ou força.

“Trem-Bala” dialoga com tradições do cinema policial e da comédia de erros sem depender de referências diretas para funcionar. A conexão com “Maria Beetle” dá lastro à ideia de que o acaso tem agenda própria, mas a versão filmada investe na fisicalidade e na precisão de movimentos para sustentar a graça. A soma entre humor e violência controlada produz uma sensação de jogo contínuo, em que qualquer detalhe pode inverter a maré. Quando o trem se aproxima do destino, resta a pergunta prática que move todos naquele ambiente: quem desce ileso de uma viagem que troca planos a cada porta que se abre.

Filme: Trem-Bala
Diretor: David Leitch
Ano: 2022
Gênero: Ação/Comédia/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★