Baseado em uma história real tão absurda e insana que só Tom Cruise poderia viver — na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Baseado em uma história real tão absurda e insana que só Tom Cruise poderia viver — na Netflix

O filme “Feito na América” acompanha a trajetória de Barry Seal, piloto da TWA que, cansado da rotina, passa a atuar em missões secretas para a CIA e, posteriormente, como intermediário do cartel de Medellín. Interpretado por Tom Cruise, o personagem ascende rapidamente ao tráfico internacional e mergulha em uma rede de poder e hipocrisia que atravessa o continente. Dirigido por Doug Liman, o longa equilibra aventura e ironia ao retratar o colapso moral de um homem que acredita controlar o próprio destino, enquanto serve a interesses muito maiores.

Desde as primeiras cenas, o ritmo acelerado e o tom sarcástico definem a atmosfera. Barry é apresentado como alguém movido por curiosidade e ganância, disposto a cruzar fronteiras físicas e éticas. Sua relação com a CIA nasce da promessa de ação e status; com o cartel colombiano, da oportunidade de multiplicar fortuna em tempo recorde. O roteiro alterna registros de humor e tensão para evidenciar a facilidade com que governos e criminosos compartilham a mesma lógica de lucro e disfarce.

Liman adota uma câmera inquieta e montagem fragmentada para refletir o caos vivido pelo protagonista. A fotografia de César Charlone, com luz intensa e textura granulada, remete à estética televisiva da década de 1980, criando uma sensação constante de artificialidade. Cada plano reforça a ideia de espetáculo, como se o mundo de Barry fosse uma encenação em que a veracidade pouco importa. Essa escolha visual transforma os voos clandestinos e os pacotes de dinheiro em imagens de euforia e decadência.

Tom Cruise utiliza seu carisma habitual para compor um personagem que vive entre a autoconfiança e a desorientação. Sua expressão de entusiasmo constante encobre a percepção crescente de que se tornou peça descartável em um jogo de poder. O ator constrói um Barry Seal sedutor, mas vulnerável, cuja queda é consequência direta da ilusão de domínio. A interpretação equilibra leveza e desespero sem recorrer ao melodrama, sustentando a crítica implícita à ideia de que sucesso e ética podem coexistir.

O filme encontra humor nas contradições da política externa norte-americana. A CIA aparece como instituição que manipula indivíduos e realidades conforme a conveniência do momento. Barry é incentivado a traficar armas para grupos paramilitares e, ao mesmo tempo, a transportar drogas que abastecem o próprio mercado americano. O resultado é um retrato da incoerência que sustentou décadas de intervenção na América Latina. O riso que nasce dessas situações carrega desconforto, pois revela a cumplicidade coletiva na manutenção do absurdo.

A trilha sonora, repleta de canções populares da época, reforça o contraste entre euforia e ruína. Cada música surge como comentário irônico sobre o contexto, evidenciando que o consumo de cultura e o consumo de drogas compartilham o mesmo entusiasmo artificial. A montagem de Andrew Mondshein acentua essa sensação de excesso: tudo se acumula, do dinheiro às mentiras, até que nada mais caiba no quadro.

A figura de Barry Seal funciona como espelho da sociedade que o idolatra e o condena. Ele não busca derrubar sistemas, apenas enriquecer dentro deles. Essa ambiguidade é o motor da narrativa: um homem comum transformado em símbolo do oportunismo americano, produto de um país que legitima o lucro a qualquer custo. Liman conduz a história com energia, mas sem glorificação. O dinamismo das sequências aéreas serve para expor a vertigem de quem vive entre o risco e a autoproteção.

Ao evitar o tom solene, “Feito na América” alcança uma crítica mais ácida. O humor escancara o cinismo institucional sem recorrer a discursos moralizantes. A violência é tratada como extensão natural do mercado, e o patriotismo aparece como fachada. A trajetória do protagonista evidencia a fusão entre crime e política, em que o mesmo sistema que o emprega será responsável por sua destruição. A ironia maior está no fato de que Barry acredita agir em nome de um país que jamais pretendeu protegê-lo.
Liman mantém o foco no personagem, mas insere detalhes que ampliam o alcance histórico. As reuniões secretas, as negociações improvisadas e a transformação de uma pequena cidade em centro logístico de contrabando evidenciam como a corrupção institucional se infiltra na vida cotidiana. O humor nunca mascara a tragédia implícita: cada sorriso esconde o medo de queda iminente.

A narrativa alterna aventura e observação política com fluidez. O espectador acompanha a ascensão e o descontrole do protagonista, sem acesso a explicações simplistas. O interesse está na tensão entre liberdade e servidão, prazer e culpa. Ao voar entre países, Barry transporta mais que mercadorias: carrega o retrato de uma nação que confunde movimento com progresso e risco com glória.

O título “Feito na América” sintetiza o sentido de farsa que atravessa a trama. O que se fabrica ali não é apenas contrabando, mas a própria ideia de poder exportável. Liman utiliza humor e velocidade para desmontar o mito de pureza moral da nação que se proclama exemplo. No centro desse turbilhão, Barry Seal encarna o cidadão disposto a tudo para continuar acreditando que ainda comanda o próprio voo.

A comédia amarga de Doug Liman permanece atual pela forma como questiona a fronteira entre heroísmo e cumplicidade. “Feito na América” é menos um filme sobre tráfico e mais um estudo sobre a transformação da ambição em mercadoria. O riso que acompanha o espectador é também sinal de desconforto, lembrando que a euforia de Barry ainda ecoa em um mundo que insiste em confundir poder com liberdade.

Filme: Feito na América
Diretor: Doug Liman
Ano: 2017
Gênero: Ação/Comédia/Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★