Parece bobinho e é: o filme que você vai amar, mas jamais vai admitir — na Netflix Divulgação / Sony Pictures

Parece bobinho e é: o filme que você vai amar, mas jamais vai admitir — na Netflix

“Burlesque” é uma roleta que gira a glamurosa promessa de que um palco pode reinventar alguém, ou ao menos nos convencer disso por duas horas. O filme se apresenta como um cabaré que sonha ser Las Vegas, enquanto a narrativa se esconde por trás de paetês, aguardando que ninguém perceba sua falta de ousadia dramática. Só que nós percebemos, e, ironicamente, é exatamente aí que mora seu charme.

Tess, interpretada por Cher com aquela aura de diva imortal que já transcendeu o conceito de tempo, administra um clube sufocado por dívidas, egos e glitter acumulado. A trama engata quando Ali, uma garota do interior sedenta por palco e vida intensa, desembarca para reivindicar o que acredita ser seu destino: brilhar. Se essa premissa parece saída de um romance barato de livraria de rodoviária, é porque é. Porém, existe algo deliciosamente sedutor em histórias que não se sentem obrigadas a disfarçar seu exagero.

Christina Aguilera, aqui a pura materialização do hedonismo pop, não canta: ela domina. A cada nota, ela reafirma ser dona do tipo de potência vocal que faz o resto do elenco virar mobília. E quando o filme tenta nos convencer de que Ali é apenas “uma garota comum descobrindo sua voz”, o público ri por dentro: ninguém com aquela garganta nasceu para ser discreto. Christina não atua com sutileza, mas quem foi que pediu sutileza? Ela usa expressões como quem pisa firme: com a convicção de quem sabe que a câmera se apaixona sempre primeiro pela voz e somente depois pelo rosto.

A execução musical, apesar de coreografada para parecer espontânea, carrega aquele aroma sintético de quem retocou cada segundo no estúdio com obsessão olímpica. Não é que funcione mal, pelo contrário. Funciona bem demais, ao ponto de a ilusão de que estamos diante de um espetáculo ao vivo se desfazer como purpurina com água. Falta um pouco de suor verdadeiro, aquela imperfeição humana que torna o desejo palpável.

Cher e Stanley Tucci fazem aqui uma dupla inesperadamente irresistível. Enquanto ela sustenta o olhar de quem sobreviveu a todos os apocalipses da indústria do entretenimento, ele oferece o equilíbrio perfeito entre sarcasmo e afeto, como um copeiro espirituoso que sabe todos os segredos do salão. Em meio à trama frágil, eles são lembrança de que carisma ainda é a maior moeda da arte.

Já os conflitos financeiros envolvendo o clube parecem brotar de uma planilha simplificada demais para convencer o mais preguiçoso dos investidores. Falta densidade, sobra pressa em encaminhar cada obstáculo para a vitrine onde tudo será resolvido pelo encanto da performance final. Nada contra finais festivos, na verdade, eles são necessários para lembrar que drama sem prazer vira penitência, mas aqui o otimismo chega tão cedo que mal dá tempo de se preocupar.

O filme tenta ser atrevido, mas se recusa a sujar as mãos. O PG-13 funciona como um colete de proteção moral que impede qualquer provocação de verdade. Burlesco sem sexualidade franca se torna um conceito higienizado demais para carregar o nome que escolheu. É como servir champagne sem álcool: as bolhas continuam lá, mas o mundo permanece sóbrio.

Ainda assim, há uma energia peculiar que torna impossível virar o rosto. As dançarinas que orbitam Aguilera são pura competência; seus movimentos produzem uma espécie de alegria cinética que dá ao filme uma razão inquestionável para existir. É entretenimento que sabe entreter, mesmo quando tenta esconder que não tem nada mais profundo para dizer.

Talvez a maior verdade de “Burlesque” seja essa: ele não deseja ser mais do que é. Não busca filosofar sobre arte, nem reinventar o musical como gênero. Ele se contenta com o fascínio primitivo do palco, com a sedução de quem ganha a noite apenas por se atrever a querer tanto. E há algo de libertador nisso, sobretudo em tempos que insistem em exigir de todo prazer uma justificativa moral ou intelectual.

Terminei o filme com glitter no pensamento e a estranha certeza de que, às vezes, a arte mais honesta é aquela que confessa sem pudor: estou aqui para te fazer sentir bem. E se o hedonismo merece defesa, e eu, como boa devota do prazer, acredito que merece, então “Burlesque” encontra seu lugar ao sol. Pode ser raso, mas brilha sem culpa. E brilhar, convenhamos, ainda é uma forma legítima de existir.

Filme: Burlesque
Diretor: Steve Antin
Ano: 2010
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★