Lançado pela Apple+ em cinco episódios, o documentário “O Lendário Martin Scorsese” é um grande painel sobre a vida e a obra do diretor de cinema. O filme foi dirigido por Rebecca Miller, filha do lendário dramaturgo Arthur Miller e casada com o ator Daniel Day-Lewis. Trata-se de uma visão ampla e até certo ponto comovente de um dos maiores autores do cinema americano. Scorsese participa ativamente do filme, concedendo longas entrevistas e revisitando toda a sua trajetória.
Os depoimentos vão dos amigos de infância e adolescência até os parceiros de uma vida inteira. Acompanhamos as falas, por exemplo, de dois grandes atores que marcaram a carreira de Scorsese: Robert De Niro, seu preferido desde os primeiros filmes, e Leonardo DiCaprio, o colaborador mais recente. As falas deles ajudam a construir uma narrativa de continuidade e afinidade. São dois rostos que, em tempos diferentes, encarnam o mesmo universo estético criado por Scorsese — ou simplesmente Marty.

O documentário, de maneira sensível, mostra como a obra do diretor é toda feita de sujeitos e figuras em colapso, desajustadas, que parecem à beira de um desmoronamento. Neste ponto, a influência de Dostoiévski é citada de forma recorrente, em especial o “Homem do Subsolo”, matriz literário do sujeito corroído e atormentado. Ele serve de chave para entender esse personagem-tipo que atravessa a filmografia de Scorsese.
Sempre pensamos nos grandes êxitos e filmes memoráveis, mas Scorsese detalha os vários colapsos que viveu ao longo da carreira. Aparecem as recusas, as dificuldades em conseguir financiamento e as tensões com os grandes estúdios. Por trás do prestígio e dos prêmios, o documentário revela uma trajetória marcada por altos e baixos, onde cada vitória carrega o peso de muitas quedas.
Scorsese lembra que dois grandes projetos o acompanharam por anos: “A Última Tentação de Cristo” (1988) e “Gangues de Nova York” (2002). Ambos simbolizam, de modos distintos, sua luta por realizar filmes que a indústria resistia em financiar. Desde o início, ele quis ser um retratista das ruas de Nova York, sobretudo da fala, da cultura e da violência da cidade. O documentário mostra como essa Nova York é inseparável da sua própria biografia, a do garoto de origem italiana, criado em Little Italy, que via e ouvia de perto o mundo que mais tarde filmaria.
Vida em colapso
Sua primeira grande afirmação autoral veio com “Caminhos Perigosos” (1973), onde reuniu personagens inspirados em pessoas reais de sua juventude, incluindo parentes, amigos e vizinhos. O papel de Johnny Boy, interpretado por De Niro, tem origem em um sujeito de carne e osso, irmão de um grande amigo de Scorsese, que chega a aparecer no documentário. Essa relação direta com a vida concreta, com as pessoas que ele conheceu, está no centro de sua obra.
O sucesso inicial veio com “Alice Não Mora Mais Aqui” (1974), filme que ele assumiu sem ser originalmente seu projeto, mas que lhe deu reconhecimento entre os grandes cineastas da época como Jean Luc Godard. Ainda assim, é em “Caminhos Perigosos”, “Taxi Driver” (1976) e “Touro Indomável” (1980), que aparece com mais força o tema central: o homem em colapso, o sujeito comum tomado pela violência e pela solidão urbana. É a figura do subsolo que o documentário destaca como referência insistente.
Em “Touro Indomável”, Scorsese filma o universo da fama e da autodestruição a partir da história real de um lutador de boxe, marcada pela brutalidade doméstica e pela culpa. A glória e a queda são inseparáveis. Já em “O Rei da Comédia” (1982), ele se voltou para o outro lado da violência. Existe o lado simbólico e cruel da cultura de massa e da busca obsessiva por reconhecimento. O filme que tinha Jerry Lewis no elenco retrata o mundo do entretenimento com ironia amarga e delirante.
O documentário mostra como a Nova York filmada por Scorsese é muito diferente, por exemplo, daquela de Woody Allen. Enquanto Allen observa as pressões dos artistas e o cotidiano da classe média (“Tiros na Broadway”, “Desconstruindo Harry”), Scorsese mergulha na rua, na fala popular, na brutalidade da cidade. E é em De Niro que ele encontra inicialmente o intérprete perfeito desse mundo.
Entre os filmes lembrados no documentário, “Depois de Horas” (1985) ocupa um lugar especial. Scorsese o define como uma espécie de autorretrato. Um homem que tenta apenas voltar para casa e não consegue, preso num labirinto de desordem e desespero. Em seguida, vem o ciclo de maturidade, entre o fim dos anos 1980 e início dos 1990, marcado por “A Última Tentação de Cristo” e Os Bons Companheiros” (1990). O primeiro revela sua leitura pessoal e polêmica da vida de Jesus, e o segundo é o que ele mesmo e os críticos chamam de “cinema total”.
Lado espiritual
O relato sobre “Os Bons Companheiros” traz a presença constante da montadora Thelma Schoonmaker (colega de universidade de Scorsese) e do roteirista Nicholas Pileggi, que o acompanharia ainda em “Cassino” (1995). Nesses filmes, a máfia não é glamourizada, mas mostrada em sua pobreza, violência cotidiana e banal. O tema reaparece com nova força em “Cabo do Medo” (1991), releitura de um clássico dos anos 1950, em que Scorsese volta a explorar o medo, a culpa e a violência que corroem o indivíduo.
O documentário também percorre sua faceta musical. A amizade com Robbie Robertson, do grupo The Band, resultou em “The Last Waltz” (1978), o registro do último show do grupo. Trata-se um dos filmes-concerto mais influentes da história. Depois vieram os documentários excelentes sobre Bob Dylan e os Rolling Stones, ampliando sua ligação com o universo do rock, que atravessa toda sua obra de ficção.
Outro aspecto importante revelado no documentário é a dimensão pessoal. Scorsese fala dos pais, das três filhas que também dão depoimentos e de sua relação com a atriz Isabella Rossellini. É ela quem o define como “o santo pecador”. Um homem dividido entre a formação católica e a atração pelo caos. Essa dualidade se expressa em filmes como “Kundun” (1997), sobre o budismo tibetano, e “Silêncio” (2016), que aborda a chegada do cristianismo ao Japão. A espiritualidade aparece como lugar de conflito.
Nos anos 2000, já consagrado, Scorsese vive o misto de reconhecimento e embate. “Os Infiltrados” (2006) finalmente lhe rende o Oscar de melhor diretor, mas o documentário mostra que sua relação com os estúdios permanece difícil. Muitos consideram seus filmes excessivamente violentos ou densos demais. Ainda assim, ele segue em frente, e a parceria com DiCaprio marca essa fase madura em filmes como “O Lobo de Wall Street (2013), em que expõe a selvageria moral do mercado financeiro e o colapso de um dos pilares da sociedade americana.
Ao longo do documentário, fica claro que sua obra é, ao mesmo tempo, retrato pessoal e um espelho da própria América. Um país de excessos, quedas e contradições, como seus personagens. A violência das ruas e o caos das instituições são extensões do mesmo mal-estar. Scorsese, o santo pecador, filma sempre à beira do colapso. É nesse limite que encontra a sua força. O documentário termina sendo uma confissão em movimento, a do artista que fez do cinema o lugar dos homens do subsolo.
