Mais insano que John Wick. Mais sangrento. Mais viciante. O novo rei dos filmes de ação está na Netflix Divulgação / Warner Bros.

Mais insano que John Wick. Mais sangrento. Mais viciante. O novo rei dos filmes de ação está na Netflix

A história acompanha um criminoso que recebe um diagnóstico terminal e resolve dar um último passo rumo à fama. Ao descobrir que figura em terceiro lugar numa lista de mais procurados, ele decide caçar os dois nomes à frente para morrer no topo. O plano é arriscado e egocêntrico, mas nasce de algo simples: a tentativa de atribuir sentido a uma vida gasta em violência. O percurso inclui alianças instáveis, confrontos calculados e episódios em que a autopromoção pesa tanto quanto a própria sobrevivência, criando um retrato de alguém que transforma a morte próxima em projeto de ascensão.

Em “Os Três Males”, dirigido por Wong Ching-po, Ethan Juan protagoniza esse mergulho na ambição, acompanhado por Gingle Wang, Ben Yuen e Chen Yi-wen. O elenco sustenta a narrativa com performances que equilibram dureza e fadiga moral, enquanto o diretor conduz o espectador por um território em que cada gesto tem valor simbólico. O título brasileiro ecoa uma chave de leitura conhecida no imaginário asiático, ligada a vícios que contaminam decisões, e a trama aproveita essa ponte para sugerir que a hierarquia do crime funciona como espelho de um desejo social de validação.

A partir do ponto de vista do protagonista, a narrativa observa o efeito corrosivo da fama medida em números. A lista de mais procurados vira exposição pública involuntária, e a violência passa a ter um componente de publicidade. As perseguições e emboscadas importam menos pelo perigo físico do que pelo cálculo de imagem: matar o rival certo, no momento adequado, rende mais prestígio que a mera sobrevivência. O detalhe decisivo é o relógio biológico, que acelera escolhas e reduz espaço para arrependimento, aproximando o filme de uma crônica sobre como o tempo curto pressiona a ética até o limite.

Wong Ching-po filma esse itinerário com atenção às texturas da noite urbana. A fotografia recorre a néon, reflexos e superfícies molhadas que sugerem febre permanente, enquanto a montagem alterna passagens contemplativas com explosões abruptas de ação. O ritmo não é uniforme, e isso favorece a percepção de que o personagem vive entre dois impulsos: a necessidade de se justificar e o impulso de se exibir. Em vez de transformar tudo em espetáculo vazio, a encenação busca respiros silenciosos que revelam desgaste emocional, quase sempre quando o corpo descansa e a mente tenta organizar um sentido possível para o que virá.

O protagonista interpretado por Ethan Juan apresenta um misto de autoconsciência e narcisismo. Ele percebe a própria escuridão, mas ainda assim procura aplauso, mesmo que esse reconhecimento venha de medos públicos e manchetes policiais. Os coadjuvantes funcionam como contrapontos claros: Ben Yuen e Chen Yi-wen representam caminhos alternativos para a mesma atração pelo poder, enquanto Gingle Wang dá a medida humana que falta ao cálculo frio do protagonista. Nessas relações, a violência ganha uma forma particular, mais próxima de confissão do que de bravata, como se cada confronto abrisse uma lembrança incômoda, e não apenas disparasse uma sequência de tiros.

O humor ácido aparece nas fissuras desse projeto de grandeza. Há ironia em ver um homem frágil de saúde investir energia na construção de um legado midiático. Há ironia maior em perceber que seus atos encontram eco em uma sociedade obcecada por listas e pódios. Nessa arena, o sucesso não depende de mérito duradouro, mas de visibilidade imediata. O filme sustenta essa chave crítica sem recorrer a discurso explícito: prefere circunstâncias que evidenciam vaidade, medo e desejo de controle, enquanto a proximidade da morte corta qualquer plano grandioso com um lembrete prosaico, de consulta médica a limitações físicas.

A trilha sonora reforça a melancolia que escorre nas bordas da ação. Em momentos de silêncio, o peso das decisões cai sobre a respiração do personagem; quando a música entra, o tom puxa para uma solenidade quebrada por sons de cidade e máquinas. O desenho de som valoriza impactos secos, portas, passos, pneus em asfalto molhado, ampliando a sensação de ambiente saturado. Nada se resolve em acentos heroicos. A coreografia das lutas é direta, sem floreio ornamental, e conversa com a proposta de acompanhar um homem que tenta organizar a própria lenda enquanto o corpo falha a cada esforço.

O diretor explora a ideia dos “três males” como motor dramático. A ignorância aparece no autoengano que move o protagonista à busca de um pódio inexistente. A raiva se manifesta nos rivais que reagem ao avanço do terceiro colocado, cada um defendendo territórios e reputações. A ganância contamina negociações, informantes e pequenas traições. O trajeto sugere que esses vícios não pertencem apenas ao submundo, mas circulam em instituições e rotinas cotidianas. Quando policiais, imprensa e curiosos se aproximam, o que se vê é um circuito de desejos que se reforça com números, fotografias e curtidas.

Nem tudo flui sem tropeços. O segundo ato alonga alguns impasses e repete perguntas já colocadas pelo enredo, o que dilata a espera por decisões efetivas. Ainda assim, esse desenho prolongado ajuda a mostrar a exaustão de personagens que vivem em estado de alerta e precisam, a cada esquina, recalibrar estratégias. Com o avanço da doença, a tensão entre urgência e vaidade cresce, e o protagonista precisa escolher entre a morte com glória estatística e a chance de um gesto que salve algo do que restou. O dilema mais interessante nasce exatamente nesse ponto de exaustão.

O conjunto do elenco sustenta nuances importantes. Ethan Juan administra o equilíbrio entre brutalidade e fragilidade, permitindo que momentos de silêncio digam mais do que frases de efeito. Ben Yuen e Chen Yi-wen não são obstáculos ilustrativos; são figuras com passado e método, que leem a ambição do outro e respondem com dureza proporcional. Gingle Wang, em aparições decisivas, ancora a narrativa na experiência de quem observa a espiral e procura algum vestígio de cuidado. Esse contraste protege o filme de cair em caricatura e dá corpo à ideia de que a busca por ranking produz perdas que números não explicam.

No desfecho, sem revelar acontecimentos específicos, a jornada deixa em aberto a questão que motivou a primeira decisão: o que vale como vitória quando o cronômetro já está no vermelho. Em vez de oferecer solução edificante, a narrativa propõe um campo de incerteza alimentado por fama passageira e rastros de sangue. A pergunta que persiste não é se o protagonista alcança o topo, e sim que tipo de memória sobrevive quando a ambição consome o pouco de tempo que resta.

Filme: Os Três Males
Diretor: Wong Ching-Po
Ano: 2023
Gênero: Ação/Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★