Uma jovem do fim da casa dos vinte percorre a cidade entre empregos e compromissos, tentando manter as contas em dia enquanto administra pequenas reparações domésticas e afetivas. O pai biológico aparece de modo intermitente, sempre com a própria agenda, e a esperança de reconhecimento esbarra em conversas que terminam sem escuta. Ao buscar o nome dele nas redes sociais, ela adiciona por engano um homem mais velho com o mesmo nome e recebe de volta atenção genuína. A conversa cresce, a curiosidade vira companhia e a possibilidade de um lugar afetivo começa a existir em “Um Pai para Lily”.
Dirigido por Tracie Laymon, o longa tem Barbie Ferreira no papel da protagonista e John Leguizamo como o novo Bob que entra em sua vida. O elenco traz ainda French Stewart como o pai biológico, Lauren “Lolo” Spencer como a amiga e empregadora que acolhe a rotina da moça, e Rachel Bay Jones em participação decisiva. A diretora focaliza relações e ritmos do cotidiano, com atenção a diálogos que avançam devagar e a silêncios que guardam recuos. O filme prefere proximidade a declarações; mostra pessoas testando confiança, não salvadores de ocasião.
A partir desse encontro, a narrativa investiga a ideia de família escolhida sem transformar o tema em cartaz. O vínculo nasce de ações simples: caronas, reparos na casa, conversas depois do expediente, conselhos que não exigem contrapartidas, mensagens que chegam sem cobrança. O novo Bob aparece como constância paciente, disposto a aprender quem é aquela jovem antes de opinar sobre o que ela deveria ser. A moça, por sua vez, descobre que limites não afastam afeto; ao contrário, criam espaço para que ele exista. Quando tenta negociar respeito com o pai de sangue, o desejo de aprovação cede lugar a um cuidado de si que não abdica da educação, mas recusa humilhações.
A encenação valoriza rostos, mãos e objetos úteis. As cenas de trabalho mostram do que a vida é feita: horários, transporte, tarefas; o corpo cansado, o humor que resiste, o gesto solidário que não aparece em selfies. A câmera se move com discrição, e a fotografia prefere cores discretas em interiores funcionais, onde o olhar encontra superfícies gastas, utensílios e ferramentas. A música evita sublinhar emoções e amarra passagens com cadência moderada. A forma escolhe não disputar protagonismo; acompanha duas pessoas que constroem uma conversa longa depois de anos de monólogos atravessados por interrupções.
No centro do filme está a pergunta sobre o que um pai representa. A protagonista tenta, mais de uma vez, estabelecer regras mínimas de convivência com o homem que, por anos, terceirizou responsabilidades emocionais. O roteiro mostra encontros em que promessas esvaziam rápido, telefonemas que se alongam sem resultado, situações em que a filha se desculpa por necessidades básicas. Laymon evita demonizar: o pai biológico é um homem comum que prioriza a si mesmo. A dureza vem do contraste entre essa prioridade crônica e as demandas da vida adulta, que não esperam por epifanias.
John Leguizamo compõe o novo Bob como alguém que oferece tempo e curiosidade, duas raridades. Ele não dita regras, não confunde cuidado com posse, não transforma a jovem em projeto pessoal. Ao ensinar a trocar uma peça, a lidar com uma burocracia ou a cozinhar um prato, compartilha experiência sem impor dívida. Barbie Ferreira interpreta a protagonista com atenção a pequenas viradas: o sorriso que hesita, a respiração que chega antes da fala, a postura que passa do pedido à afirmação sem escalar para confronto gratuito. French Stewart sustenta a incômoda presença do pai que regressa por interesse, impondo enredos paralelos de frustração que a vida adulta precisa administrar.
O humor aparece nos contratempos de casa, nos conselhos que saem tortos e nos encontros que começam sem assunto e acabam com uma lista de tarefas resolvidas. Não há piadas para aliviar conflitos; há leveza que convive com dor antiga e a torna suportável. A montagem acompanha avanços e recuos, oferecendo ao público a chance de comparar versões da mesma personagem ao longo do percurso. Em vez de transformar tropeços em espetáculo, o filme se interessa por consequências: o que muda quando a protagonista diz “não posso hoje”, quando pede ajuda sem medo de parecer frágil, quando recusa conversas que a desqualificam.
A direção de Laymon prefere proximidade às alegorias. O cenário de trabalho doméstico, a casa que precisa de ajustes e o bairro de deslocamentos curtos fixam os pés da história em chão reconhecível. Essa base concreta sustenta escolhas éticas: quem cuida de quem, quem pede desculpas, quem some quando não é atendido, quem permanece para repetir gestos, quem aprende a diferença entre conselho e imposição. Não há discursos; há práticas. E é nelas que a protagonista percebe que a dignidade não dispensa ternura.
Outro ponto de força está no retrato do cuidado como trabalho. A protagonista não é definida por carência, e sim por competência e cansaço. O novo Bob também é desenhado pela rotina: ferramentas, horários, contas. Essa simetria explica a confiança que cresce. Eles se reconhecem na responsabilidade diária e, desse reconhecimento, nasce linguagem comum. Amizade, aqui, significa presença e constância. É a repetição quase invisível que transforma a casa, a semana, a forma de pedir e de responder.
A linha do pai biológico permanece como ferida que fecha devagar. Ele volta quando convém, desaparece quando é chamado a sustentar promessas, e o filme acompanha o aprendizado de não insistir em portas que só oferecem corredor. Não há castigos exemplares nem gestos vingativos: há o arranjo possível de uma vida que segue, com ganhos concretos. A dor não se resolve, mas o peso melhora quando distribuído entre amigos.
O desfecho não busca efeitos grandiosos. Aponta para rotina que continuará, para visitas combinadas, para uma cozinha onde dois pratos saem quase no mesmo horário, para contas que ainda existirão, agora menos pesadas. Em “Um Pai para Lily”, o parentesco escolhido aparece como caminho viável quando o laço de origem falha além do reparo, e essa viabilidade tem valor prático. Em tempos de contatos abundantes e disponibilidade escassa, o que fica é uma invenção de família que se mede em horas doadas, favores devolvidos e uma lista comum de tarefas que, quando o dia termina, alguém risca com satisfação tranquila.
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