Alguns filmes não pedem licença para existir. Eles surgem, ensopados de sangue, suor e ironia, como um grito que atravessa a tela e obriga o espectador a lidar com o desconforto de olhar para aquilo que o cinema de ação tantas vezes banalizou: a dor feminina transformada em espetáculo. “Vingança” é isso, um tiro certeiro contra a complacência estética e moral de um gênero saturado de testosterona. É um filme que entende perfeitamente o jogo que joga e, o tempo todo, parece rir do próprio público por já saber suas reações de antemão.
A diretora Coralie Fargeat parte de um terreno conhecido: a velha trama da mulher violentada que retorna para acertar as contas com os homens que tentaram destruí-la. Mas em vez de seguir o manual do “rape and revenge” como um exercício catártico de violência, aquele tipo de cinema que confunde empoderamento com carnificina, Fargeat usa o gênero como campo de batalha simbólico. Cada plano, cada exagero visual, cada ferimento aberto é uma ironia dirigida ao olhar masculino que, historicamente, se alimentou dessas narrativas. Há aqui uma compreensão cirúrgica do voyeurismo que move o cinema de ação: o prazer de assistir à dor, desde que ela seja estilizada, higienizada, convertida em performance.
Jen, a protagonista, não nasce heroína. É, inicialmente, a fantasia masculina encarnada: loira, corpo esculpido, roupas mínimas e um sorriso que beira a autoparódia. Quando a violência irrompe, o filme implode junto, literalmente. O deserto, antes um cenário turístico de faroeste francês, torna-se uma arena infernal, quase bíblica, onde o corpo da mulher é dilacerado e renascido, queimado e ressuscitado. A câmera acompanha essa metamorfose sem pudor, mas também sem fetiche. É como se Fargeat dissesse: “olhe, você pediu por isso, agora encare”.
A virada estética que ”Vingança” propõe é o que o torna fascinante. O sangue aqui não é apenas o traço da brutalidade, mas o próprio gesto artístico. O vermelho que cobre a tela é saturado até a irrealidade, um vermelho que se aproxima do pop, do quadrinho, do delírio psicodélico. A mise-en-scène é construída como se cada ferida fosse uma pincelada expressionista. É um filme que entende o artifício da violência e o explora até o limite, desarmando a ideia de realismo. Porque o realismo, no fundo, é o conforto do espectador: é o que permite distanciar-se da dor e dizer “é só um filme”. Fargeat nega essa escapatória. Ela não quer que acreditemos, quer que sintamos.
Há, no cerne de ”Vingança”, uma discussão feroz sobre o corpom e não apenas o corpo feminino. O corpo como território de poder, como texto escrito pela brutalidade masculina e reescrito pela sobrevivência. Quando Jen se levanta, ferida, coberta de sangue, com o olhar febril e a pele tatuada pelo trauma, o que vemos já não é uma vítima transformada em guerreira. É algo mais complexo, quase pós-humano: uma entidade que transcendeu a condição de personagem. A mulher que o cinema sempre filmou como objeto se torna agora o próprio olhar que fere de volta.
O filme também é uma sátira, e das mais inteligentes. A sequência final, um balé grotesco de sangue e desespero, é tão excessiva que beira o cômico. E é proposital. A diretora ri do público que exige coerência de um filme sobre vingança, como se houvesse alguma racionalidade possível dentro do trauma. O realismo é um luxo masculino; a sobrevivência, uma arte feminina. O fato de o enredo ser “improvável”, as feridas que curam rápido demais, as quedas absurdas, a ressurreição simbólica, é parte da provocação. O espectador que reclama da falta de verossimilhança revela justamente o que Fargeat quer expor: a nossa incapacidade de aceitar que a fantasia pode, sim, ser um instrumento de denúncia.
Tecnicamente, ”Vingança” é um espetáculo. A fotografia transforma o deserto num purgatório de luz e calor. O som, cuidadosamente desenhado, amplifica cada ruído de respiração, cada estalo de osso, cada gota de sangue que cai, como se o ambiente inteiro pulsasse junto com a protagonista. A trilha sonora, pontuada por batidas eletrônicas, é um contraponto sarcástico ao inferno visual: o caos embalado por uma pulsação quase dançante. Tudo é propositalmente excessivo, e nesse excesso está a elegância do filme, porque o exagero é a única linguagem possível quando se trata de rasgar o olhar patriarcal.
O que “Vingança” faz, de maneira brilhante, é deslocar o centro da narrativa. O filme não é sobre os homens que a feriram, são figurantes de uma tragédia que acreditavam controlar. É sobre a mulher que se recusa a morrer, e sobre a diretora que se recusa a filmar como os outros. Há algo profundamente libertador em ver o olhar feminino não tentando “corrigir” o cinema de gênero, mas apropriando-se dele com ironia e fúria.
Claro, é possível dizer que ”Vingança” é “só” um filme de ação estilizado, e que todo o discurso é interpretativo demais. Mas isso seria ignorar o fato de que o cinema nunca é inocente. Fargeat compreende o prazer visual como armadilha, e nos convida a cair nela, só para nos fazer perceber o quão cúmplices somos desse olhar.
O resultado é uma experiência visceral, e por vezes desconcertante, porque obriga a reconhecer o prazer e o desconforto na mesma medida. ”Vingança” é tão divertida quanto perturbadora, tão absurda quanto lúcida. E talvez seja justamente essa contradição o que o torna memorável: um filme que se comporta como um delírio pop, mas que termina como manifesto. Não é a história de uma mulher vingando-se de três homens; é a história de um cinema inteiro tentando se redimir dos seus pecados, e sendo cobrado, finalmente, por uma diretora que entendeu que a verdadeira subversão é transformar a dor em estética e o sangue em discurso.
★★★★★★★★★★


