“Desobedientes” é um espelho incômodo do nosso desejo de liberdade e da nossa incapacidade crônica de sustentá-la. Sob o disfarce de um drama psicológico ambientado em uma comunidade isolada, a minissérie desarma o espectador com uma falsa sensação de previsibilidade, até que o gesto mais simples, como o ato de sair de casa sem permissão, revela a anatomia do poder em sua forma mais íntima: a que se infiltra nas convicções e molda as vontades. É justamente aí que o título ganha força, não como bandeira heroica, mas como constatação amarga. Ser desobediente, em “Desobedientes”, é apenas sobreviver à própria lucidez.
A narrativa acompanha um grupo de jovens que, após um colapso social, são enviados para um centro de reeducação moral dirigido por um líder carismático e insuportavelmente sensato, a figura perfeita de autoridade: alguém que não impõe pela força, mas pela lógica. Cada episódio funciona como uma dissecação lenta da obediência travestida de ordem. Há aulas sobre ética e rituais de autocontrole; há confissões públicas disfarçadas de exercícios de empatia. O discurso é sempre impecável, e é exatamente isso que o torna perigoso. A série entende que o autoritarismo moderno não usa farda nem grita ordens: ele sorri, explica e promete bem-estar coletivo.
A direção, inteligentemente contida, aposta em uma estética quase limpa demais. As cores neutras, o enquadramento simétrico e o silêncio calculado constroem um universo onde tudo parece estar no lugar, o que, claro, é o primeiro sinal de que algo está profundamente errado. A atmosfera lembra um laboratório social, e o espectador é o rato que observa outros ratos acreditando ter escolha. Cada detalhe, do figurino à arquitetura fria dos dormitórios, reforça a ideia de que o controle total não precisa de grades, apenas de consentimento. O horror, aqui, é administrativo.
Mas o grande trunfo de ”Desobedientes” está nas personagens femininas. São elas que sustentam a tensão moral da trama, ora se rebelando em silêncio, ora entregando-se com uma docilidade desconcertante. Não há heroínas no sentido clássico, apenas mulheres que se movem entre o instinto e a culpa. O roteiro, escrito com precisão quase cruel, transforma o ato de duvidar em uma heresia, e o de amar em delito. As relações amorosas que nascem dentro da comunidade funcionam como pequenos experimentos de liberdade, mas a série não as romantiza: cada toque é uma forma de resistência efêmera, e cada palavra dita fora das regras tem o peso de um crime.
A protagonista, cuja construção psicológica é uma das mais complexas que o streaming nos ofereceu nos últimos anos, encarna a dúvida como princípio de existência. Ela não é uma revolucionária, mas alguém que percebe, com um misto de fascínio e terror, que não acredita mais no que repete. Sua jornada não é de emancipação, mas de desprogramação. É a lenta decomposição de uma crença, e, portanto, o processo mais doloroso que um ser humano pode viver. A atriz responsável por essa performance entrega uma interpretação desconcertante: seu olhar nunca se decide entre medo e desejo, como se obedecer também fosse, de algum modo, um prazer viciante.
O roteiro, consciente da própria ambição, evita resoluções fáceis. O último episódio, já motivo de controvérsia entre críticos, não oferece um desfecho. “Desobedientes” termina como um espelho rachado: o espectador vê as fendas, mas continua vendo o próprio rosto refletido nelas. É a constatação de que o poder não está apenas em quem comanda, mas em quem aprendeu a precisar ser comandado.
Há algo de profundamente atual, e inquietante, na forma como a série lida com a moralidade. Em vez de pregar contra o autoritarismo, ela o traduz na linguagem da autoajuda, dos coachs, das terapias coletivas que prometem libertação emocional. O líder não é um vilão, é um gestor da alma. Ele não ameaça, orienta. Não proíbe, recomenda. E, no fim, é essa sutileza que torna “Desobedientes” tão devastadora. O mal, aqui, tem voz calma e vocabulário inspirador. O perigo não é ser punido, é ser convencido.
Ao longo de seus sete episódios, a série demonstra uma precisão narrativa rara: não há espaço para didatismo, tampouco para indulgência. Tudo o que acontece, acontece com desconforto. Mesmo os momentos de aparente ternura, um abraço, um olhar de cumplicidade, são atravessados por uma sensação de que há algo sendo vigiado. Essa tensão permanente entre o humano e o institucional transforma “Desobedientes” em uma alegoria brilhante da contemporaneidade: uma era em que a rebeldia é permitida, desde que caiba no cronograma.
O que ”Desobedientes” faz é desmontar a ilusão de escolha, tanto dos personagens quanto do público. Quando o episódio final se encerra e a tela escurece, resta a pergunta incômoda: o que exatamente nos diferencia deles? Seguimos nossas regras, nossas rotinas, nossos líderes benevolentes, tudo em nome de uma liberdade que talvez nunca tenha existido. E é por isso que a série não se contenta em entreter; ela acusa, sussurrando. Porque, no fundo, ser desobediente, hoje, é apenas o outro nome para estar vivo o suficiente para perceber o engano.
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