Brad Pitt e Cate Blanchett estrelam vencedor do Oscar de Alejandro Iñárritu na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Brad Pitt e Cate Blanchett estrelam vencedor do Oscar de Alejandro Iñárritu na Netflix

“Babel”, de Alejandro González Iñárritu, não quer ordenar o planeta, quer confundi-lo. E é justamente dessa confusão trágica, linguística e moral que nasce sua força. O que o diretor constrói não é uma fábula sobre a incomunicabilidade, mas uma cartografia do desespero contemporâneo. Quatro histórias atravessadas por uma bala, mas, sobretudo, por aquilo que nos torna humanos: a incapacidade de compreender o outro e, pior ainda, de compreender a si mesmo.

Tudo começa com dois meninos marroquinos que brincam com uma arma como quem testa o destino. Um disparo atinge uma turista americana, e o resto é o efeito dominó da globalização emocional. Iñárritu filma o acaso como se fosse uma divindade: cega, impiedosa, mas absolutamente coerente com o caos que rege nossas relações. A mulher ferida (Cate Blanchett) sangra no meio do deserto, enquanto o marido (Brad Pitt) tenta pedir socorro em um idioma que ninguém entende. E ali, naquela paisagem árida e absurda, o filme condensa sua tese: não há idioma que traduza o sofrimento.

Enquanto isso, do outro lado da fronteira, uma babá mexicana tenta atravessar o deserto com as crianças americanas que cuida. Atravessa também, sem saber, a linha invisível entre o amor e a imprudência. Amelia é talvez o coração do filme, não a vítima, mas a figura que encarna a pureza do afeto num sistema que só reconhece culpas. Sua travessia é a mais comovente, não pela tragédia em si, mas pela banalidade do gesto que a inicia: a vontade de fazer o bem. Iñárritu tem um talento raro para mostrar como a bondade pode ser também uma forma de condenação.

No Japão, uma adolescente surda percorre Tóquio como quem tenta existir dentro de um ruído permanente. Sua mudez é a metáfora mais brutal do filme: mesmo quando não falamos, o mundo continua gritando ao redor. Chieko é o ponto em que a incomunicabilidade deixa de ser um problema linguístico e se torna um problema ontológico. Ela não busca apenas ouvir, mas ser percebida. Sua nudez, muitas vezes desconfortável, não é erótica: é um grito visual, uma tentativa de romper a parede invisível que separa o corpo do mundo. Iñárritu, sem piedade nem indulgência, transforma essa dor em imagem, e imagem, aqui, é linguagem.

Há quem veja “Babel” como uma parábola sobre a diferença cultural. Eu prefiro enxergá-lo como uma autópsia da empatia. O que o filme disseca não é o conflito entre povos, mas o colapso de um sentimento coletivo que o Ocidente, com sua vaidade moral, ainda finge possuir. Quando uma mulher americana é baleada, o noticiário internacional reage como se o planeta tivesse sido ferido. Quando uma empregada latina é deportada, o mundo volta a dormir. A “torre de Babel” do título, afinal, não é um mito sobre idiomas, mas sobre hierarquias: quem tem voz e quem é silenciado.

A estrutura fragmentada, tão característica de Iñárritu e do roteirista Guillermo Arriaga, funciona como um espelho quebrado. Cada história reflete a outra, mas nenhuma se completa. É um cinema de fissuras, de narrativas que se interrompem para que o espectador preencha os vazios com o próprio desconforto. Essa fragmentação não é um truque formal; é uma ética. Em “Babel”, compreender tudo seria uma obscenidade. O mundo não se explica, ele apenas se repete em línguas diferentes.

Há momentos em que o filme quase se torna insuportável, não pela violência explícita, mas pela lucidez. Poucas vezes o cinema contemporâneo teve coragem de expor com tanta frieza o sentimentalismo hipócrita que move o imaginário global. Iñárritu desmonta a crença de que a tragédia une as pessoas: o que ele mostra é que a tragédia apenas revela o quanto já estávamos separados. Entre o deserto, o asfalto e o neon de Tóquio, o que ecoa é sempre o mesmo som, o ruído de uma humanidade que tenta, em vão, se entender.

Tecnicamente, o filme é impecável, mas não é isso que o torna inesquecível. Sua grandeza está no desconforto que provoca: “Babel” é uma experiência que exige do espectador não empatia, mas autocrítica. A pergunta que fica não é “por que essas pessoas sofrem?”, mas “por que eu só percebo o sofrimento quando ele me reflete?”. É um espelho cruel, e talvez por isso tão necessário.

Filme: Babel
Diretor: Alejandro González Iñárritu
Ano: 2006
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★