Liliana Colanzi e o brilho que habita a escuridão

Liliana Colanzi e o brilho que habita a escuridão

Há escritores que realmente precisam fazer sucesso e passar a integrar o maior número de estantes possível. Precisam ser encontrados nas livrarias, para além dos sites de livros, pois é necessário folhear um pouco, ler uns trechinhos, aderir à ideia, apegar-se ao formato e à capa e, acima de tudo, conhecer a biografia nas últimas páginas. É o caso desse belo e essencial achado: “Vocês Brilham no Escuro”, de Liliana Colanzi. A autora é boliviana, com uma bagagem de formação acadêmica que inclui um mestrado em Estudos Latino-Americanos, pela Universidade de Cambridge, e um doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade de Cornell. Apesar de cosmopolita e professora nos EUA, ela está interessada na América do Sul, especialmente na sua Bolívia, e conta, nesse livro de contos curtos, histórias sobre a região onde cresceu e viveu, com muita qualidade, extrapolando ainda para lugares sul-americanos inusitados, como a cidade de Goiânia, onde faz um registro sofisticado e importante sobre a tragédia do césio-137.

Livro
Vocês Brilham no Escuro, de Liliana Colanzi (Mundaréu, 112 páginas, tradução de Bruno Cobalchini Mattos)

E é por isso que “vocês” brilham no escuro. O acidente radiativo em Goiânia, visto pelos olhos de alguém de fora, por uma estética literária magnética, sem julgamentos ou concepções equivocadas ou amadoras, é descrito de forma crua e cativante. Colanzi avalia a ingenuidade humana, a ganância e o encantamento. É quase inconcebível que algo tão inusitado e terrível tenha acontecido em Goiânia. A sequência de erros, a trajetória catastrófica, passa por tantas impossibilidades que chegamos a nos deixar levar pela infantil ideia de que o destino queria assim. Absurdo. Na verdade, foram a negligência e a desinformação os vilões. E a gente humilde da cidade não intuía o perigo, não imaginava que uma cápsula fechada, de onde irradiava um brilho singular, contaminante em muitos sentidos, pudesse conter a morte. O brilho, a textura, a cor, esse universo novo encapsulado pelo invólucro da proibição, o material metálico que oprimia a luz da esperança, a promessa da mudança e da fortuna. A ignorância completa, a falta de malícia e de medo, o impulso para o mergulho no desconhecido — tudo isso, com competência, é discutido liricamente no texto maduro de Colanzi. Uma tristeza sem fim é o resultado da leitura, justamente porque nos afeta a todos que moramos nesse estado relegado ao isolamento e ao preconceito. A literatura é uma conciliadora de povos e uma redentora de injustiças. Liliana é uma das responsáveis por esse feito.

“Mas, assim que soube que éramos de Goiânia, a dona inventou desculpas e não quis nos contratar. Quando já estávamos com um pé na rua, ela nos chamou. Por um instante, achamos que talvez tivesse mudado de ideia. A mulher tinha uma curiosidade, uma pergunta que escapava de sua garganta: ‘Vocês Brilham no Escuro’.”

O livro é dividido em partes conceituais. A mais impressionante é a primeira. Com o título de A caverna, os textos curtos tratam de um lugar no tempo, de forma conceitual, sem uma direção específica que determine uma seta entre passado e futuro. Gente diferente experimenta a vivência de estar em um momento intenso na caverna. O lugar é palco para o registro histórico e para a memória, ou ainda para as relações entre humanos que não se tocam no espaço, mas que têm suas vidas transversalmente envolvidas no tempo. Aqui, Colanzi fala da vivência feminina diante da violência física, psicológica e emocional, de maneira intensa e sensível. Há contos que beiram a perfeição estética, com histórias francamente poéticas e interessantemente distintas, como raramente se vê no mar de livros que são derramados constantemente no mercado. Liliana consegue fazer sua literatura sem que sua alta bagagem acadêmica pese de forma desmedida na intensidade narrativa. “Ela mal registrou o golpe. Ficou estendida de barriga para cima, com a testa afundada e a imagem daqueles estranhos animais cravada nas pupilas.”

Sem roubar o estilo, mas tomando de assalto a inspiração das grandes escritoras mundiais, Colanzi reinventa situações bem contadas por autoras como Annie Ernaux, Silvina Ocampo, Marosa Di Giorgio, Selva Almada e outras grandes conhecedoras da natureza humana e da memória feminina na história.

O livro possui ainda uma interessante visita à ficção científica underground, com personagens marginais no sentido da vida, à margem de uma usina nuclear estranha que influencia comportamentos. Há humor negro e sarcasmo desmedido, que não incomodam nem afetam negativamente. A energia nuclear é o tema, e o discurso gira em torno dos desmandos e das consequências dessa “fábrica”, levando à negligência ambiental, à violência social e a reações devido à radioatividade. O conto trata da dicotomia clássica e universal: “Para alguns, aparece como progresso tecnológico; para outros, representa risco existencial.” É um preâmbulo de comportamento e de realidade social para o conto homônimo, mas sem o humor ácido que o permeia.

Colanzi, ao discutir o brilho mortal que contaminou goianos, matou e deixou uma cicatriz em alto-relevo na cidade e, com suas histórias que incomodam e atraem, ilumina uma verdade indiscutível: a consciência de que a escuridão não se dissipa com o brilho. Ela se torna visível nele. “Vocês Brilham no Escuro” é essa constatação cruel: que aquilo que nos fascina também nos adoece, que a luz pode ser veneno, que a memória, quando exposta, não cicatriza, apenas continua a irradiar.

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.