O cinema de Stéphane Brizé sempre encontrou força na contenção, e em “A Vida de Uma Mulher”, adaptação de Guy de Maupassant, essa contenção se transforma em método, ética e diagnóstico. Nada de grandes explosões, discursos inflamados ou gestos libertadores: o que o diretor constrói é um retrato devastador justamente porque opera nas elipses, nos intervalos, nos vazios entre os acontecimentos. Não vemos o casamento de Jeanne, nem sua descoberta da traição, nem o segundo adultério, apenas o que precede e o que resta. O filme parece dizer que, para a mulher do século 19 (e talvez ainda hoje), os fatos são irrelevantes; o que importa é o sistema que os produz e repete.
Brizé enxerga Jeanne como engrenagem de uma estrutura que disfarça opressão sob a aparência de decoro. Filha de uma aristocracia rural em declínio, ela é ensinada a cultivar flores, não a decidir seu destino. O aprendizado inicial, em que o pai lhe mostra como plantar sementes, condensa todo o arco trágico: ela germina sem saber que será colhida por outros. O filme retorna a essa imagem no fim, o jardim antes luminoso, depois enegrecido, como um comentário cruel sobre a natureza cíclica da submissão feminina.
Os homens, nesse universo, não são apenas agentes de engano, mas peças complementares de uma engrenagem moral que se autoperpetua. Julien trai, o pai se cala, os padres manipulam. O velho sacerdote convence Jeanne a perdoar o marido em nome de uma paz espiritual que, na verdade, é a sua própria aposentadoria tranquila. O jovem padre, em nome de uma nova consciência, a conduz a um gesto que precipita a tragédia. Ambos falham pelo mesmo motivo: transformam a mulher em campo de teste para seus princípios. A religião, aqui, não redime, apenas reorganiza o sofrimento.
É sintomático que Brizé elimine as cenas “decisivas” e concentre a narrativa nas consequências. O que se vê é o cotidiano corroído de Jeanne, o lento desmoronar de uma vida moldada pelo dever e pela culpa. A ausência de ação não é sinal de passividade narrativa, mas de crítica: Jeanne não age porque não lhe é permitido agir. Sua aparente docilidade é o reflexo de um sistema que dá à mulher sentimentos, mas nunca poder.
Essa impotência se reflete até na estrutura temporal. O filme alterna o presente esvaziado de Jeanne com lembranças idealizadas de juventude, uma nostalgia que, em vez de consolo, funciona como prisão. Ao reviver os instantes felizes com o marido e o filho, Jeanne reafirma a lógica que a destrói: quanto mais ela se agarra à lembrança do amor, mais se condena à repetição da perda. Diferente da mãe, que recorda uma paixão secreta como forma de resistência, Jeanne se alimenta de lembranças que a enfraquecem.
Rosalie, a empregada, é a única presença feminina que escapa parcialmente desse ciclo. Traída pelo mesmo homem, ela encontra um destino mais digno justamente por ser excluída da aristocracia que arruína Jeanne. Quando retorna, anos depois, para cuidar da antiga patroa arruinada, traz consigo não apenas solidariedade, mas uma possibilidade de reconstrução. O último plano, que reúne Rosalie, Jeanne e a criança, talvez neta, talvez símbolo, é menos redenção que hipótese: a de que o afeto entre mulheres pode ser a forma mais elementar de revolução.
“A Vida de Uma Mulher” é menos um drama de época que um espelho moral. Seu interesse não está no século 19, mas no presente que ele denuncia. A mise-en-scène de Brizé, precisa, sóbria, quase ascética, expõe a persistência do mesmo mecanismo: o de atribuir à mulher a responsabilidade pelos fracassos masculinos. O marido dilapida a herança, o filho repete o erro, e quem paga é sempre Jeanne. O filme parece resumir o destino feminino em uma equação cruel: os homens erram, as mulheres sustentam.
Mas há algo de luminoso no gesto final, quando Jeanne aceita a ajuda de Rosalie e, por um instante, deixa de resistir ao cuidado. Nesse breve lapso, Brizé encontra sua verdade mais dura e mais bela: a força feminina não está na submissão disfarçada de virtude, mas na possibilidade de partilhar o fardo. É nesse reconhecimento mútuo, silencioso, cansado, mas ainda vivo, que “A Vida de Uma Mulher” encontra sua centelha de humanidade.
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