Macabro, engraçado e inexplicavelmente lindo: o filme de zumbi mais fofo do cinema está na Netflix Jan Thijs / Summit Entertainment

Macabro, engraçado e inexplicavelmente lindo: o filme de zumbi mais fofo do cinema está na Netflix

Num cenário devastado por uma praga que reduziu a humanidade a bolsões fortificados, um jovem zumbi vaga entre restos de civilização e tenta reorganizar lembranças quebradas. O encontro com uma sobrevivente desencadeia algo fora do esperado: sinais de empatia e desejo de comunicação, sentimentos ausentes havia tempo. É a partir dessa faísca que o longa “Meu Namorado é um Zumbi” desenvolve sua vertente romântica e sua observação social. Dirigido por Jonathan Levine, com Nicholas Hoult e Teresa Palmer nos papéis centrais e John Malkovich como líder militar, o filme adapta o livro “Sangue Quente”, de Isaac Marion, aproximando o mito do morto-vivo de questões de confiança e convivência.

Levine escolhe uma via de humor constante, mas controlado, que nasce de pequenas inadequações: passos duros, frases curtas, objetos do passado tratados como tesouros afetivos. A narração em off do protagonista funciona como janela para um cérebro enferrujado que tenta voltar a girar, combinando autoironia e um certo espanto com a própria condição. Essa opção dá ritmo interno às cenas e convida o público a observar o retorno gradual de um vocabulário emocional, sem depender de gritos ou sustos para manter o interesse. As cores começam frias e vão ganhando calor à medida que a relação cresce, criando um marcador visual simples para o que acontece por dentro.

Nicholas Hoult constrói um corpo que redescobre gestos básicos, e o controle na repetição desses movimentos dá graça às tentativas de sociabilidade. Teresa Palmer oferece a contracena necessária, com firmeza de objetivos e atenção prática ao que pode ou não funcionar naquele contexto. Entre os coadjuvantes, Rob Corddry impõe carisma discreto ao amigo zumbi, com olhares e grunhidos que comunicam mais do que longos diálogos. Já John Malkovich representa a rigidez militar e a política do medo, figura importante para dimensionar a distância entre proteção e paranoia, elemento que move decisões tensas nas cidades cercadas.

O filme se divide entre dois polos: uma comunidade humana que se fechou em muros e patrulhas, e criaturas que perderam quase toda a pele e assumiram a condição de casco ambulante. Nesse mapa, a violência aparece como hábito defensivo e como desistência de qualquer lembrança de afeto. A proposta central está em testar se pequenos acordos e sinais de confiança conseguem corroer práticas baseadas em alarme permanente. Levine prefere mostrar consequências de escolhas singelas, como compartilhar objetos do passado e encarar o outro sem automatismos, o que coloca o romance em diálogo com um tema amplo: como sair do transe social produzido por crises continuadas.

A comédia romântica se instala sem apagar o perigo. Situações de perseguição e sustos pontuais mantêm a sensação de ameaça, mas a aposta principal recai na capacidade de aproximação dos protagonistas. Em vez de tiradas incessantes, o roteiro trabalha com silêncios e uma escuta atenta, recurso que valoriza expressões e pausas. Hoult e Palmer têm química construída em gradações quase imperceptíveis, em que um toque breve ou uma frase truncada funciona como marcador de avanço. Essa progressão modesta cria credibilidade para a hipótese mais ousada do filme: vínculos podem reverter um quadro de anestesia afetiva.

O desenho sonoro privilegia respiros e canções que ancoram lembranças, uma espécie de arquivo portátil de sensações. A montagem guarda espaço para olhares demorados, o que evita o atropelo comum em histórias de sobrevivência. Os efeitos visuais cumprem a tarefa de distinguir corpos em estágios diferentes de decadência, sem transformar cada aparição em espetáculo. Há imagens que beiram o alegórico, como o contraste entre corredores vazios e gestos de cuidado, mas a encenação recua antes do cartaz explicativo, apostando no acúmulo de sinais. Essa contenção mantém a história próxima de uma fábula urbana, legível sem sublinhados.

Em alguns momentos, a pressa por solucionar impasses deixa relações laterais menos desenvolvidas, caso da conexão entre a jovem e o pai. O filme sugere pontos de choque e reconciliação possíveis, mas acelera decisões que pediriam um pouco mais de atrito argumentativo. Nada disso desmonta a proposta principal, embora comprometa nuances de conflito institucional dentro do enclave humano. Também há passagens em que a sátira poderia morder com mais força, especialmente quando a organização social do refúgio militar aparece em tela. O drama sobre regras e exceções caberia em um espaço maior, e a falta desse debate prolongado limita algumas consequências.

A tradição zumbi no cinema já serviu para discutir consumo, contágio e alienação. Títulos como “A Noite dos Mortos-Vivos” e “Todo Mundo Quase Morto” mostram como esse imaginário se presta a leituras históricas e cômicas. “Meu Namorado é um Zumbi” escolhe um recorte específico: investigar a possibilidade de retorno à sensibilidade. Quando o filme aposta nessa trilha, a narrativa encontra um tom próprio, equilibrando o grotesco com uma ternura rara no subgênero. O humor nunca vira deboche contra os personagens; a piada nasce do esforço sincero de reaprender sinais básicos de convivência.

Há um comentário social claro no modo como a cidade cercada administra o perigo. O medo, quando vira regra única, simplifica o olhar e empobrece a imaginação, e o longa expõe esse efeito por meio de ordens rígidas e protocolos que excluem nuances. Ao fazer da reconexão um processo e não um milagre, o filme preserva verossimilhança mesmo nos lances mais fantasiosos. A hipótese que se coloca é direta: se grupos rivais forem capazes de reconhecer gradualmente sinais de mudança, a própria definição de ameaça pode ser revista sem apagar memórias de dor.

Quando a história avança para confrontos inevitáveis, a relação do casal sustenta escolhas que desafiam velhos hábitos, e o contágio de empatia começa a alterar expectativas nos dois lados do muro. O interesse maior se encontra nesse contágio, mais do que nas cenas de ação. O título brasileiro, com seu tom brincalhão, dá pistas do equilíbrio entre romance e pós-apocalipse, combinação que o filme conduz com constância. O desfecho dos personagens principais não precisa ser revelado para que se perceba a direção da mudança sugerida ao espectador, que fica diante de uma pergunta objetiva: que sinais bastariam para flexibilizar certezas duras construídas pelo medo?

Filme: Meu Namorado é um Zumbi
Diretor: Jonathan Levine
Ano: 2013
Gênero: Comédia/horror/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★