Quando amamos, saímos de nós mesmos. Amar é o que faz todo sacrifício valer a pena, todo sofrimento parecer evolução e a mínima chance de gozo transformar-se em plenitude. Entretanto, num mundo que reza pela cartilha profana do capital, o amor muitas vezes fenece, estrangulado pelas mãos cruéis do dinheiro ou, pior, molda-se a seus caprichos. O vil metal aduba milhões de preconceitos, oferecendo mesura aos que exercem o poder e ignorando quem clama por uma oportunidade. Critérios equivocados definem as relações e ergue-se um monumento à negação do amor. Derrubá-lo requer bravura e a lucidez de entender que a vida é mais que acumular patrimônio.
Numa sociedade marcada pela indiferença, afirmar-se é nadar contra a letífera maré do conformismo. Qualquer um já teve a impressão de que em todo o universo não havia espaço para suas ideias ou, por que não?, para seus devaneios, porque viu tudo ocupado por quem pode mais. Reivindicar seu quinhão é dar à vida algum significado, esforçando-se por traduzir e interpretar a mensagem mais valiosa de todas. Cada homem e cada mulher tem o direito e o dever de colocar-se diante do existir de igual para igual, orgulhoso de si mesmo, exercendo a coragem sobre-humana de não combater seus demônios e não desistir.
A vida não é uma estrada reta. Tem desvios, curvas, despenhadeiros. Recorre-se à imagem de um porto seguro para se falar de sucesso, mas ele é a própria instabilidade. A fortuna nunca é perene ou eterna. Quem vive apenas para alcançá-la experimenta um árido vazio quando a conquista. O fracasso, por sua vez, não é um rival absoluto: ele tem o dom de nos humanizar. Mostra que não somos deuses, bestas ou máquinas, mas seres em progresso constante. Fracassar é um convite tentador ao recomeço, ainda que esse convite venha em forma de uma angústia inexplicável. Nesse balanço é que a vida tem razão de ser. Fracasso e doença são ambos mestres impiedosos, mas sábios. Eles aproximam-nos de uma verdade dura, mas tão certa quanto libertadora: ninguém controla nada.
Equilibrando força e delicadeza é que atingimos os meandros mais vis e escuros de nossa alma. Para tanto, há que se recusar o silêncio e verter o caos na ordem possível. Nesta lista figuram cinco produções que reafirmam a essência filosófica do cinema ao remexer emoções, questionando as falsas verdades que se estabeleceram como monólitos que não admitem discrepâncias. São filmes que chegaram à praça no decorrer deste já claudicante 2025, e assim, como se não quisessem nada, manifestam tal potência criativa que ninguém fica-lhes indiferente. Histórias que, sem dúvida, deixam sua marca.

Segundo longa-metragem de Celine Song após o ótimo “Vidas Passadas” (2023), “Amores Materialistas” é uma comédia romântica que desafia convenções ao explorar as interseções entre amor, dinheiro e identidade na Nova York contemporânea. Inspirada na experiência pessoal da diretora como organizadora de casamentos, a trama acompanha Lucy (Dakota Johnson), uma profissional bem-sucedida que organiza relacionamentos com base em critérios objetivos, como renda e aparência. Entretanto, sua própria vida amorosa entra em conflito quando ela se vê dividida entre Harry Castillo (Pedro Pascal), um milionário generoso, e John Pitts (Chris Evans), seu ex-namorado, um ator em dificuldades financeiras. O filme subverte os clichês do gênero ao tratar o amor não como destino ou acaso, mas como uma escolha corajosa que exige vulnerabilidade. Song utiliza o triângulo amoroso para questionar a lógica transacional dos relacionamentos modernos, onde o afeto muitas vezes é mediado por status e segurança material. A estética refinada, com fotografia em 35mm de Shabier Kirchner, além da trilha sonora de Japanese Breakfast, conferem ao longa um tom sofisticado e emocionalmente ressonante. “Amores Materialistas” é uma reflexão sensível sobre o que significa amar num mundo onde sentimentos e cifras se entrelaçam. Com performances carismáticas e direção precisa, o filme reafirma Celine Song como uma das vozes mais promissoras do cinema contemporâneo.

Ney Matogrosso não é masculino ou feminino, mas uma entidade, um espírito que guarda as florestas e as águas materializado em seu canto andrógino. Este poderia ser um grande problema em “Homem com H”, mas o diretor-roteirista Esmir Filho acha o tom certo entre a magia de um garoto em seu doído processo de autoconhecimento e a ânsia por liberdade que, enfim, se materializa. Esmir propõe uma confusão deliberada entre a persona Matogrosso e Ney de Souza Pereira, um rapaz judicioso, romântico, até ingênuo, que gostava de usar o palco para instigar o público a rever seus conceitos e digerir seus preconceitos. “Homem com H” prima pela originalidade ao dar mais ênfase às sensações que às datas, complementando o rol de minuciosas retrospectivas cronológicas da biografia assinada pelo jornalista Julio Maria em 2021. “Homem com H” é um achado ao desvelar Ney como o garoto admirado com as curvas e a voz de Elvira Pagã (1920-2003), uma diva cujos passos seguiu, porém sempre em busca de sua própria marca. Nem preto, nem branco, nem índio e nem homem, nem mulher — ou tudo isso junto —, Ney Matogrosso é um inclassificável.

Bong Joon-ho é um homem ousado. Poucos cineastas sabem como dizer verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como o sul-coreano, que, merecidamente, adicionou ao currículo láureas a exemplo do Oscar de Melhor Filme por “Parasita” (2019), o primeiro longa de língua estrangeira a vencer nessa categoria, agraciado também com a Palma de Ouro de Cannes — e fazia cerca de setenta anos que uma mesma produção não conquistava os dois prêmios máximos mais importantes do cinema. Se “Parasita” abriu os olhos do mundo para o que tem feito a indústria cinematográfica da Coreia do Sul, “Mickey 17” entra na equação como um catalisador dos novos desejos do público e do pensamento refinado do diretor, que nunca se furtou a tocar nas chagas expostas da humanidade desde muito antes da fama. “Mickey 17” parece, aliás, uma fusão de “Parasita” com “Expresso do Amanhã” (2013), uma história sobre ultrarricos que bancam o fomento de pesquisas sobre a colonização de um outro mundo, no qual pobres são mais que desassistidos: são a escória.

As quase três horas de “Missão: Impossível — O Acerto Final” deslizam com Ethan Hunt pelos céus dos quatro cantos do planeta por onde a narrativa vai e quando acaba resta aquele sentimento bom de… missão cumprida. Na oitava produção da franquia — e ao que tudo indica, a última —, Christopher McQuarrie une o que pode haver de mais estimulante em cenas de perseguição ao humor voluntário de seus personagens, sem dúvida um dos segredos de “Missão: Impossível” ter ido tão longe e ter cativado tanto a audiência. A impressão é que a série, criada por Bruce Geller (1930-1978) e exibida pela CBS entre 1966 e 1973, não vai acabar só porque falta espaço para mais cruzinhas na coronha do seu mocinho torto. Tom Cruise até pode ser compulsoriamente retirado do elenco, mas já se teoriza que Glen Powell, brilhante em “Top Gun: Maverick”, estará disposto a encarar o desafio se convocado. E isso não é nenhuma coincidência. “O Acerto Final” começa com um flashback de cenas dos outros sete capítulos. Nelas, nota-se que Hunt já passou por maus bocados, apesar de sua nova tarefa ser a que o transtorna mais. A poesia ácida de McQuarrie e do corroteirista Erik Jendresen vem a calhar, mormente para os saudosistas, aqueles que nunca se esquecem do começo do anti-herói pela lente de Brian De Palma. “Missão: Impossível – O Acerto Final” é, principalmente, o término de uma era.

Há filmes avessos a rótulos, e é precisamente esse o caso de “Pecadores”. O novo trabalho de Ryan Coogler rejeita boa parte das expectativas que se queira ter a seu respeito ao fundir drama de época, horror gótico e musical para contar uma história de resistência, de luta, tudo muito bem temperado por ironia e dispondo de apuro estético irretocável. A saga de dois irmãos pretos veteranos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que em 1932 voltam ao Delta do Mississípi determinados a abrir um espaço de socialização para negros parece um romance de formação à James Baldwin (1924-1987) ou Toni Morrison (1931-2019), fixando-se na relação entre os gêmeos Smoke e Stack Moore ao longo do terço inicial do longa. Findo esse vasto e enganoso prólogo, o texto de Coogler passa a um horror formulaico, com vampiros brancos e caipiras, cruéis, a encarnar a ameaça sórdida do racismo. O diretor-roteirista é hábil em sustentar esses dois tempos narrativos, ainda que sob pena de ofender suscetibilidades. E sem prejuízo da lógica. Jack O’Connell rouba a cena, o que poderia dar margem a considerações indelicadas, não fossem o carisma de Mosaku e o talento de Delroy Lindo. Também há lugar para um amor maldito, mas nem precisava. O caos grandiloquente criado por Coogler sufoca qualquer clichê mais insinuante.