A história de amor que não apenas emociona, mas representa resistência contra injustiças — na Netflix Divulgação / Annapurna Pictures

A história de amor que não apenas emociona, mas representa resistência contra injustiças — na Netflix

Poucos diretores contemporâneos dominam a arte da delicadeza como Barry Jenkins. Em “Se a Rua Beale Falasse”, o cineasta transforma uma história de amor interrompida em um gesto de resistência, convertendo o íntimo em político e o cotidiano em poesia. Não há pressa em sua narrativa, há respiro, contemplação e uma ternura que parece desafiar o tempo. Jenkins não se interessa por grandes gestos ou discursos inflamados: seu cinema é um murmúrio persistente, uma tentativa de encontrar beleza mesmo naquilo que o mundo insiste em corromper.

A trama, inspirada no romance de James Baldwin, acompanha Tish e Fonny, dois jovens negros em Harlem nos anos 1970, cujo amor é brutalmente atravessado pela injustiça. Fonny é preso sob uma acusação fabricada, e a vida do casal se torna uma luta para provar sua inocência. Essa premissa, que poderia cair em melodrama, ganha outra dimensão sob o olhar de Jenkins: o que move o filme não é a tragédia, mas a devoção. Cada gesto entre Tish e Fonny é uma forma de afirmar a própria humanidade em meio a um sistema que a nega.

A direção de Jenkins constrói um espaço quase onírico, onde o afeto resiste como se fosse uma luz frágil em meio ao nevoeiro. A câmera não observa, ela acaricia. O olhar que se demora sobre um rosto, o silêncio que se prolonga entre duas respirações, o tempo que se expande até o limite da contemplação: tudo em “Se a Rua Beale Falasse” parece movido por uma fé na potência do sentimento. O diretor faz da imagem uma linguagem emocional, um modo de traduzir o que Baldwin escrevia com fervor, o amor como forma de sobrevivência.

Mas Jenkins não romantiza o sofrimento. Ao contrário, seu filme compreende que o amor, para corpos negros, nunca foi apenas um gesto íntimo, mas uma declaração política. Há algo profundamente subversivo na maneira como o filme se recusa a reduzir seus personagens à dor. Mesmo diante da violência e da arbitrariedade, eles preservam uma dignidade silenciosa, um tipo de pureza que desarma qualquer tentativa de vitimização. Tish não é apenas uma mulher que luta pelo homem que ama; é uma jovem que aprende a narrar o próprio mundo, transformando sua voz em instrumento de memória.

A ambientação de Nova York cumpre aqui o papel de um personagem. Jenkins a retrata como um organismo vivo, pulsante, contraditório, saturado de promessas e desilusões. A cidade respira através de sons triviais: o ranger do metrô, o burburinho das calçadas, o vento que corta as ruas úmidas. Cada ruído integra uma sinfonia que expande o drama e o torna mais palpável. Essa atenção minuciosa à textura sonora é uma das marcas mais notáveis do filme: ela dá corpo àquilo que o roteiro apenas sugere, como se cada som fosse uma lembrança que resiste a ser apagada.

A música, composta por Nicholas Britell, atua como um fio invisível que costura emoção e memória. É uma trilha que não sublinha o drama, o acompanha, quase em sussurros. As notas se misturam à fotografia quente e dourada, criando uma atmosfera de suspensão, como se o amor de Tish e Fonny existisse fora do tempo histórico. Essa fusão entre imagem, som e afeto transforma o filme em uma experiência sensorial, em que o espectador não apenas assiste, mas habita o sentimento.

Ainda que o ritmo seja deliberadamente lento, nunca há dispersão. Jenkins trabalha a duração como elemento expressivo: o tempo estendido das cenas não é excesso, mas insistência, uma forma de fazer o espectador permanecer com a dor e com a beleza, sem a fuga do corte rápido. O cinema contemporâneo raramente se permite essa paciência, e é justamente nesse gesto de demora que o filme encontra sua força.

No entanto, “Se a Rua Beale Falasse” não se contenta em ser belo. Sua doçura é também denúncia. Cada momento de ternura contrasta com o absurdo da injustiça, e o amor, paradoxalmente, revela o que o racismo tenta apagar: a possibilidade de sentir. O filme é menos uma narrativa sobre o que acontece e mais um retrato de como se sente viver o que acontece, uma diferença que o transforma em algo maior que um drama social.

Fica a sensação de ter visto algo que transcende o próprio enredo: um gesto de fé no poder da imagem como forma de reparação. Barry Jenkins, fiel ao espírito de Baldwin, faz de “Se a Rua Beale Falasse” um hino à resistência afetiva, um lembrete de que amar, para alguns, sempre foi o ato mais revolucionário possível.

Filme: Se a Rua Beale Falasse
Diretor: Barry Jenkins
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.