Às vezes, a infância é um peso. Sob o véu de uma ingenuidade beatífica, escondem-se traumas com os quais gente em tenra idade não sabe lidar e que vão se sedimentando, até que não reste o mínimo traço da pureza de antes. Crescer num lar infeliz, rodeado por adultos violentos, deixa cicatrizes que o tempo não apaga, e crianças que passam a assumir responsabilidades que não deveriam ser suas abdicam de uma fase marcada por importantes descobertas — sem, no entanto, virem a ser adultos. Essa infância pesada, doída, de solidão sem paz e silêncios que gritam, é a substância com que Ferit Karahan compõe “O Protetor do Irmão”, um filme sobre assuntos que continuam atuais. A câmera invasiva do diretor persegue Yusuf e Mehmet, o Memo, dois estudantes curdos num internato da Anatólia, a porção asiática da Turquia, esgravatando suas vidas miseráveis com o propósito de nos convencer de alguma coisa. Ao longo de hora e meia, Karahan e a corroteirista Gülistan Acet, sua esposa, frisam o isolamento desses meninos, cercados por montanhas de neve e uma inexpugnável negligência.
Na sufocante introdução, garotos espremem-se num corredor úmido a caminho do banho. Apesar do tamanho diminuto, Yusuf é uma espécie de líder natural, observando todo o movimento e fazendo o possível para não despertar a ira dos monitores. Os alunos mais comportados têm direito a água quente, ainda que não haja garantia de que o privilégio mantenha-se no caso de um motim qualquer. Minutos depois, uma briga entre turmas de anos diferentes tem por efeito o corte do aquecimento, e os internos começam a despejar bacias de água gelada na cabeça, parando só na hora em que o bedel autoriza. Segue-se uma noite de angústia para Memo, acordado até madrugada e insistindo para dormir na cama junto com Yusuf, que o rechaça com lhaneza. De manhã, os dois estão numa enfermaria sucateada, Memo recebe uma aspirina e aguenta-se como pode.
Em vários momentos, o trabalho de Karahan lembra o Abbas Kiarostami (1940-2016) de “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?” (1987), numa mistura perturbadora de documentário e uma ficção nem tão inventada assim, plena de enquadramentos que transformam o calvário dos protagonistas numa emoção que o público também é capaz de sentir. O diretor confere personalidade a seu longa mirando na alegoria da escola como uma representação do poder, que deixa à míngua os mais vulneráveis entre os vulneráveis, sem crises de consciência ou dilemas éticos, e então cada um que saiba defender-se por si, lógica que o pequeno Yusuf trata de quebrar. Uma galeria de adultos entra e sai de cena de forma até frenética, dispersiva, mas o desempenho de Samet Yıldız e Nurullah Alaca é magnético a ponto de ninguém ficar eventualmente seduzido pelo que não importa. Karahan quer nos convencer de que Yusuf e Momo também são problema nosso.
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