Guy Ritchie sempre filmou o caos com um sorriso nos lábios. Sua assinatura era o descompasso estilizado entre o sangue e o riso: criminosos patéticos que se acham gênios, trambiques transformados em coreografia, tiros que soam como piadas internas. Mas em “Infiltrado”, o diretor abandona o sarcasmo britânico e se permite algo mais raro: o silêncio. O filme marca o ponto em que Ritchie parece cansado de rir de si mesmo, e decide escavar o que restou quando a ironia deixa de ser uma defesa e passa a ser uma prisão estética.
Há, aqui, uma sobriedade quase desconfortável. O enredo, sobre um homem misterioso que entra para uma empresa de transporte de valores após uma série de assaltos violentos, poderia ter se tornado mais uma farsa armada, com tiroteios embalados a ritmo de pub. No entanto, o que surge é um thriller glacial, em que a violência não diverte: sufoca. Ritchie retira o verniz que sempre o protegendo do real e o substitui por algo próximo de Michael Mann, a dureza de um mundo que não permite ironias. O diretor, antes viciado em ritmo e verborragia, agora filma o vazio com uma precisão inesperadamente controlada.
O protagonista, vivido por Jason Statham, não é apenas o executor de vinganças de sempre. É um corpo sem temperamento, quase um fantasma. Sua fúria não é performática, é ritualística. Quando ele mata, não há catarses ou slogans: há cálculo. Essa contenção, que poderia empobrecer o filme, torna-se sua força. Ritchie parece fascinado pela ideia de um homem que perdeu a capacidade de se emocionar, e, talvez, pela sua própria tentativa de filmar sem o brilho que o consagrou. “Infiltrado” é um autorretrato involuntário de um cineasta tentando reeducar seus instintos.
A narrativa fragmentada, dividida em capítulos que revisitam o mesmo evento sob diferentes pontos de vista, funciona menos como um truque de roteiro e mais como um espelho rachado. Cada parte revela uma faceta do mesmo inferno moral, onde todos acreditam ser protagonistas até perceberem que o filme não pertence a ninguém. Não há espaço para o herói ritchiano, aquele que sobrevive ao absurdo com frases espirituosas. Aqui, ninguém sai inteiro. O humor, que antes servia para anestesiar a violência, foi substituído por uma espécie de niilismo metódico: o riso deu lugar ao ruído metálico das balas.
O que torna “Infiltrado” instigante não é a originalidade do enredo, uma história de vingança poderia ser contada em duas linhas, mas o modo como Ritchie a encena como uma purgação de estilo. A câmera, mais estática, evita o exibicionismo que definia seu cinema. A montagem, antes frenética, agora é deliberadamente lenta, como se o diretor testasse a paciência do espectador. Mesmo as cenas de ação, brutais, implacáveis, têm uma frieza cirúrgica que contrasta com a exuberância teatral de ”Snatch” ou “RocknRolla”. É como se Ritchie tivesse retirado o vício da própria adrenalina.
Há, claro, momentos em que essa contenção ameaça virar anestesia. Alguns subplots se perdem, o ritmo vacila, e a ausência de humor torna o filme menos prazeroso que eficaz. Ainda assim, há uma coerência admirável na tentativa de maturação. “Infiltrado” é o gesto de um cineasta que se recusa a envelhecer reproduzindo os mesmos truques, e, nesse risco, encontra um tipo diferente de energia. Ritchie troca o brilho pelo peso, o caos pela melancolia, e transforma seu crime estilizado em tragédia silenciosa.
O último ato, uma longa sequência de tiroteios e traições, tem menos a ver com espetáculo e mais com exaustão. É o clímax de um mundo que se dissolve em chumbo, sem redenção possível. E é justamente nesse desencanto que Ritchie parece mais lúcido: o autor de “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” finalmente percebe que a violência que o fascinava também o definiu. Ao filmá-la sem glamour, ele a devolve àquilo que sempre foi uma forma de desespero.
”Infiltrado” talvez não seja o auge criativo de Ritchie, mas é o filme que melhor traduz sua inquietação. Ao dizer não ao cinismo confortável do passado, ele confronta o próprio esgotamento e o reconfigura em gesto estético. O resultado é um thriller que fala menos sobre vingança e mais sobre reinvenção de um homem, e de um diretor. Um filme que soa como um acerto de contas entre o artista e seus velhos vícios, onde a raiva é menos uma emoção e mais uma tentativa de continuar filmando o mundo quando o charme já não basta.
★★★★★★★★★★