Em um país reorganizado após sucessivas crises climáticas e econômicas, a reprodução deixou de ser decisão privada. Para gerar uma criança, casais precisam passar por um exame de aptidão que dura uma semana inteira. A avaliadora se instala no lar, dita protocolos, observa interações, provoca situações de conflito e, ao final, entrega um parecer que define o futuro daquela família. Dentro desse quadro, “A Avaliação” acompanha um casal bem-sucedido que aceita o processo e vê a rotina converter-se em série de provas psicológicas, sociais e domésticas. O filme, dirigido por Fleur Fortuné, tem como protagonistas Elizabeth Olsen e Himesh Patel, além de Alicia Vikander no papel da agente responsável pelo veredito. Não se trata de adaptação literária.
A narrativa se organiza a partir de tarefas aparentemente simples, como cozinhar, receber visitas, dividir responsabilidades e simular a presença de uma criança. Em cada etapa, a avaliadora redefine o que considera aceitável, ora incentivando uma atitude, ora reprovando a mesma atitude minutos depois. A incerteza constante corrói a cumplicidade do casal. A casa, espaço que deveria garantir descanso e repouso, passa a refletir o olhar de uma instituição sem rosto. A direção de Fortuné evita grandes panorâmicas e prefere espaços contidos, com ênfase em corredores, cozinhas e salas montadas com precisão quase clínica, solução que destaca pequenos gestos e ruídos das conversas.
Alicia Vikander compõe a funcionária como alguém que domina a pausa e a mudança súbita de tom. Há cordialidade no primeiro contato, seguida de apartes irônicos e pequenas humilhações que expõem a assimetria entre quem vigia e quem é vigiado. O jogo de autoridade nasce do detalhe: uma pergunta que parece inocente, um comentário sobre limpeza, uma orientação que chega tarde, quando o casal já falhou no teste. O desenho da personagem dispensa vilania explícita, preferindo um comportamento que combina protocolo e capricho pessoal, algo comum quando regras amplas dependem da interpretação do agente encarregado.
Elizabeth Olsen interpreta uma mulher que tenta preservar a ordem do lar como se a arrumação pudesse blindar a vida íntima. O esforço aparece na postura, na economia de fala e no modo de olhar para a avaliadora antes de responder qualquer coisa. Himesh Patel oferece outro registro, mais permeável à pressão e ao constrangimento. Ele cede terreno para evitar conflito, atitude que, em um ambiente de avaliação permanente, vira munição contra o próprio casal. A dinâmica entre os dois alterna cumplicidade e desconfiança e mantém o interesse mesmo quando a história repete a mesma cena de poder com leves variações.
O roteiro apresenta um mundo que racionalizou recursos e transformou valores afetivos em indicadores. O exame de aptidão supõe que o bom pai e a boa mãe são mensuráveis por checklist. Com isso, políticas públicas entram na cozinha e estabelecem uma hierarquia curiosa: quem domina a liturgia do rendimento passa na frente. O filme observa como essa lógica reproduz desigualdades tradicionais, cobrando da mulher uma disciplina doméstica que se confunde com vocação e do homem uma capacidade de comando que não admite hesitação. Não há discurso didático sobre gênero, basta olhar como cada regra impacta os personagens para enxergar as frestas.
Quando a encenação flerta com o humor, o resultado é eficaz. A avaliadora faz a convidada, impõe formalidades sociais e força os anfitriões a performar felicidade regulamentar. Em outra ocasião, a simulação de cuidados infantis exige atenção milimétrica a horários e acessórios, como se o afeto dependesse do cumprimento de planilhas. Nessas passagens, o filme ganha ritmo e coloca o público dentro da lógica absurda que transforma carinho em protocolo. O riso vem do descompasso entre o que é vivido e o que precisa ser demonstrado em relatório, descompasso que se torna a verdadeira matéria das cenas.
A fotografia prefere superfícies limpas, linhas retas e uma paleta de cores contida, aposta adequada para um mundo que suspeita de qualquer excesso. O som reforça a vigilância com portas que rangem mais do que deveriam, passos que soam na hora errada e o silêncio calculado de quem aguarda uma reação. Não há dependência de efeitos visuais, e a gradação da tensão nasce do acúmulo de microconstrangimentos, da falta de privacidade e do medo de falhar na frente de alguém que não demonstra falhas. O filme se mantém próximo dos corpos e dos olhares, o que favorece o trabalho do elenco.
Em alguns momentos, a narrativa estica conflitos já estabelecidos e insiste em reiterações que não acrescentam novos dados. Ainda assim, a condução evita desvios grandiloquentes e se mantém fiel ao recorte doméstico. A aposta no espaço único dá coerência ao olhar e sustenta a ideia principal: o lar como território tomado por regulamentos que mudam de acordo com a conveniência da autoridade. Essa escolha permite acompanhar com nitidez como pequenas ordens deslocam objetos, hábitos e até lembranças, efeito comum quando normas externas moldam o cotidiano de forma invasiva.
O filme também registra as contradições internas da avaliadora. Em certos gestos, ela parece seduzida pela vida que observa. Em outros, age para sabotar a harmonia do casal e produzir os dados que pretende colher. Essa ambiguidade impede a leitura confortável de herói e vilã e amplia a discussão sobre quem fiscaliza quem. Quando um sistema depende tanto do julgamento individual, a fronteira entre avaliação e abuso fica porosa. A história se beneficia dessa incerteza, pois a cada dia de inspeção cresce a chance de que pequenas preferências pessoais decidam destinos que deveriam ser públicos e transparentes.
Sem revelar o desfecho, basta dizer que a semana de provas deixa marcas que extrapolam o parecer oficial. A experiência de viver sob observação altera a forma como o casal se enxerga e reorganiza prioridades que pareciam sólidas. A principal questão permanece em aberto, interessando mais do que a nota final: que tipo de sociedade aceita delegar a terceiros a licença para gerar vida e quais efeitos essa decisão produz sobre confiança, desejo e responsabilidade compartilhada. A resposta pode variar, mas a dúvida continua a ecoar quando a porta da casa volta a se fechar.
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