Há filmes que passam — e histórias que ficam. Uma das mais belas histórias de amor do cinema acaba de chegar à Netflix Divulgação / Twentieth Century FOx

Há filmes que passam — e histórias que ficam. Uma das mais belas histórias de amor do cinema acaba de chegar à Netflix

Dois jovens de famílias rivais se apaixonam à primeira vista e decidem manter o sentimento apesar do ambiente hostil que os cerca. Em “Romeu + Julieta”, a cidade renascentista vira Verona Beach, metrópole à beira-mar tomada por outdoors, sirenes e manchetes. Baz Luhrmann conserva a linguagem de William Shakespeare e enquadra o enredo numa paisagem de gangues corporativas. Leonardo DiCaprio interpreta o herdeiro dos Montéquios e Claire Danes vive a filha dos Capuletos; a tensão entre o segredo amoroso e a vigilância pública alimenta cada encontro. A origem literária está explícita: a adaptação parte da peça “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, e faz da preservação do texto uma aposta central.

A direção acelera o passo desde o prólogo, usando cortes rápidos, zooms e letreiros para ilustrar a disputa entre as casas. Não há reconstituição histórica nem afetação museológica. Pistolas com nomes gravados substituem espadas, carros importados fazem as vezes de cavalos e templos convivem com mercados e cais. O conceito é simples de entender: a fábula da pressa juvenil, comprimida por códigos de honra e vigilância dos adultos, pode habitar qualquer época. A manutenção do verso inglês convive com o cenário contemporâneo, e desse atrito nasce um humor que torna o material acessível sem simplificação grosseira.

Leonardo DiCaprio molda um Romeu impulsivo, de olhar límpido e gestos que alternam audácia e hesitação. A juventude do ator não esconde a gravidade do personagem; ao contrário, ilumina a imprudência que move as decisões. Claire Danes recusa a ingenuidade fácil e constrói uma Julieta lúcida, mais observadora que temerária. Juntos, os dois encontram um centro afetivo estável para um filme que deliberadamente flerta com a saturação visual. O romance convence pelo contraste entre o caos da cidade e a delicadeza dos corpos em quadro, diferença que orienta o olhar do público sem sublinhado excessivo.

O elenco de apoio fortalece essa leitura. John Leguizamo faz de Teobaldo uma figura felina, sempre pronto a exibir honra e vaidade. Harold Perrineau interpreta Mercúcio como espírito livre e trágico, cuja alegria serve também como máscara para um desalento visível. Diane Venora e Paul Sorvino apresentam os Capuletos como aristocracia exausta, mais preocupada em manter fachada do que em cuidar da filha. Brian Dennehy oferece a Ted Montéquio gravidade melancólica. Pete Postlethwaite compõe um Frei Lourenço atento ao mundo das ervas e das palavras, figura adulta rara que tenta formar uma ponte entre impulsos juvenis e a rigidez de família.

A trilha sonora atua como comentário constante. “Lovefool”, dos Cardigans, colore de ironia o entusiasmo dos primeiros encontros. “Kissing You”, na voz de Des’ree, suspende o barulho urbano e dá tempo para o sentimento respirar. “Talk Show Host”, do Radiohead, introduz uma melancolia que reaparece quando as consequências se acumulam. A escolha musical não funciona como coleção de hits descolada do filme; cada faixa dialoga com o comportamento dos personagens e com a superfície publicitária da cidade. Há coerência entre batidas, figurino e cenografia, e a música se torna um fio que guia o espectador por estados de espírito bem definidos.

O desenho visual prefere o excesso calculado ao minimalismo. Cores saturadas, néon, tipografias gigantes, helicópteros e sirenes compõem um ambiente que transforma qualquer briga em espetáculo. A edição comprime tempo e alonga emoções, ora atropelando ações, ora prolongando olhares, exercício que requer atenção à respiração dos atores. A câmera não teme o exagero, mas sabe quando recuar para registrar rostos em calma tensa. Essa alternância sustenta a ideia de que a vida dos personagens acontece sob holofotes permanentes, em um mundo que transforma dramas privados em pauta pública.

A presença de símbolos religiosos convive com a cultura de consumo. Capelas decoradas, relicários e imagens sacras dividem espaço com logotipos, armas cromadas e ternos engomados. Não há sermão, e sim observação de uma cidade que compra signos e os reempacota. Nessa arena, a masculinidade muitas vezes se confunde com performance: provocações, poses e frases de efeito valem mais do que prudência. A violência, estilizada pela encenação, produz consequências narrativas claras; não é mero enfeite visual, e sim um custo que recai sobre todos os envolvidos.

A manutenção do texto shakespeariano conserva ritmo e música próprios. Mesmo para quem acompanha por legendas, a cadência das falas confere gravidade às decisões juvenis. O contraste entre a língua clássica e os objetos contemporâneos produz humor e estranhamento produtivo. A impressão é de que as palavras carregam memória, enquanto o cenário tenta seduzi-las para um presente de letreiros e sirenes. Essa disputa simbólica sustenta o interesse em momentos sem grande ação, porque a fala, bem dita, mantém tensão dramática.

Como adaptação, “Romeu + Julieta” não pretende substituir outras leituras, e sim somar. Há versões que privilegiam a época original e outras que buscam atualizações discretas. Aqui, a escolha é frontal: abraçar a cultura pop e ver o que acontece quando versos do século 21 batem de frente com publicidade e mídia. A proposta favorece espectadores jovens sem excluir quem conhece o texto de longa data. O filme funciona também como porta de entrada para Shakespeare, já que demonstra que a história suporta mudanças de roupa sem perder a espinha moral.

O aspecto mais interessante está na maneira como honra e reputação condicionam gestos cotidianos. Os jovens amam, mas carregam sobrenomes; os adultos governam, mas respondem a aparências. A cidade reage a qualquer faísca com luzes e sirenes, e a imprensa organiza o espetáculo da violência como se fosse programação. Nesse ambiente, o sentimento precisa encontrar frestas para existir, e o tempo corre sempre contra os dois. Quando o romance tenta se afirmar, a lógica do orgulho coletivo insiste em cobrar provas públicas de coragem, e o risco cresce a cada mal-entendido.

Visto hoje, “Romeu + Julieta” mantém vigor estético e clareza dramática. O filme envelheceu com curiosidade porque antecipa a expansão de telas, o culto à imagem e a ansiedade da exposição constante. A combinação de atuações jovens, música pop e encenação expansiva produz um retrato de adolescência cercada por holofotes, sem tratar os personagens como caricatura. A pergunta que ecoa é simples e ainda atual: quanto de silêncio e tempo um amor precisa para sobreviver em uma cidade que transforma tudo em espetáculo?

Filme: Romeu + Julieta
Diretor: Baz Luhrmann
Ano: 1996
Gênero: Drama/Romance/Tragédia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★