Há algo de paradoxal em “Romeo + Julieta”: é um filme que, ao mesmo tempo em que tenta domesticar Shakespeare para o público adolescente dos anos 1990, parece zombar da própria tentativa. Baz Luhrmann não adapta o texto clássico, ele o explode. Mantém o verso elisabetano intacto, mas o insere em um universo saturado de signos pop, câmeras nervosas e figurinos histriônicos, criando um espetáculo que flerta com o ridículo para revelar justamente o quanto há de ridículo em tratar o amor adolescente como tragédia cósmica. O que poderia ser uma simples modernização torna-se uma sátira estilizada da própria obsessão cultural por traduzir o cânone em linguagem de consumo.
A estética do filme é um ataque sensorial. As cores berram, a montagem fere o olhar, e cada plano parece competir por atenção. Luhrmann transforma Verona em uma Los Angeles ensolarada e violenta, tomada por outdoors, helicópteros e pistolas batizadas com nomes de espadas, uma tradução literal da metáfora em mercadoria. É nesse caos de luzes e ruídos que o amor entre Romeo e Juliet se insinua como um lampejo de ingenuidade. O exagero visual não é mero exibicionismo: é um comentário sobre o estado emocional dos personagens, prisioneiros da urgência hormonal e da teatralidade de sua própria paixão. O filme se move como a mente de um adolescente: intenso, contraditório, incapaz de nuance e convencido de sua profundidade.
A primeira metade, tomada por duelos estilizados e câmeras frenéticas, constrói uma paródia do cinema de ação da época. A violência é coreografada como se fosse um comercial de perfume, e é justamente nessa artificialidade que Luhrmann encontra um espelho para o texto de Shakespeare: ambos dependem da performance. O amor, a honra e o destino são tratados como papéis que se representam, não como verdades morais. A sequência do baile, em que Mercutio embriaga Romeo em êxtase alucinatório, é o ponto em que o filme mais se aproxima de sua própria tese, o amor como delírio, como vertigem estética. O encontro entre os protagonistas, visto através de um aquário, parece interromper o caos do mundo para revelar algo puramente imagético, quase publicitário, e por isso mesmo profundamente falso e verdadeiro ao mesmo tempo.
A segunda metade tenta, com alguma dificuldade, sustentar o peso da tragédia. Quando o ritmo desacelera, o artifício fica mais exposto: Leonardo DiCaprio e Claire Danes parecem lutar contra o idioma que falam, e a poesia se esfarela na tradução literal. Ainda assim, há algo de fascinante na vulnerabilidade desses desempenhos. Eles não compreendem totalmente o texto, e essa ignorância é parte essencial do sentido. Luhrmann parece saber que seus personagens não dominam a linguagem que pronunciam, e transforma esse descompasso em metáfora: adolescentes tentando encenar a grandeza do amor, sem saber que estão repetindo versos seculares que outros já morreram por acreditar.
“Romeo + Julieta” não é uma adaptação, mas uma provocação sobre a própria impossibilidade de adaptar Shakespeare. Ao transpor a poesia em imagens e saturar o drama em estética, Luhrmann substitui o verbo pela histeria visual e descobre que ambos falam a mesma língua: a do excesso. Seu filme é simultaneamente terrível e hipnótico, como o primeiro amor, desmedido, teatral, intoxicante. Entre o sagrado e o kitsch, o clássico e o videoclipe, ele constrói um delírio barroco que entende Shakespeare não como literatura, mas como pura emoção performática. E, nesse caos luminoso, talvez esteja sua fidelidade mais profunda.
★★★★★★★★★★