Filme argentino que acaba de estrear na Netflix é um pequeno diamante do cinema de 2025 Joe Ekonen / Netflix

Filme argentino que acaba de estrear na Netflix é um pequeno diamante do cinema de 2025

Uma idosa é internada por decisão das filhas e um perito judicial recebe dias contados para dizer se existe doença ou apenas um modo de viver que desagrada à família. Em “27 Noites”, Daniel Hendler dirige e atua como o perito Leandro Casares, enquanto Marilú Marini interpreta Martha Hoffman, foco do processo. O elenco traz ainda Humberto Tortonese, Julieta Zylberberg, Paula Grinszpan e Carla Peterson. O roteiro parte do livro “Veintisiete noches”, de Natalia Zito (Galerna, 2021), inspirado em um caso real, e transforma um litígio privado em investigação pública, com consequências que ultrapassam um prontuário.

O conflito central se enuncia sem mistério: o parecer de Casares decidirá se Martha permanece sob custódia ou recupera o cotidiano. O objetivo do perito parece simples no papel, mas cada passo muda risco e tempo. Quando as filhas relatam gastos e comportamentos considerados impróprios, o pedido de tutela ganha força. Quando Martha responde com precisão sobre datas, pessoas e compromissos, o perito precisa revisar hipóteses e abrir novas frentes de checagem. Nada entra em cena sem consequência: um relato altera o escopo da avaliação, um detalhe documental ajusta o relógio dramático, um silêncio recoloca uma dúvida que parecia resolvida.

O prazo das 27 noites funciona como obstáculo e motor. A contagem orienta agendas, entrevistas e requisições de exame, estreita janelas de verificação e impõe escolhas sobre o que priorizar. Cada noite encerrada sem resposta completa aumenta o peso das próximas decisões. Ao mesmo tempo, a clínica impõe regras que limitam a autonomia de Martha, e essas regras atravessam a investigação com efeitos práticos. Quando um protocolo restringe visitas, cai a possibilidade de observação livre. Quando um relatório anterior sustenta diagnóstico apressado, cresce a chance de erro institucional se repetir.

Martha, por sua vez, não se apresenta como enigma etéreo. Ela age, provoca, recua, calcula. Quando coopera e fornece dados verificáveis, desloca o objetivo do perito de confirmar uma hipótese para testar a consistência do ambiente que a cerca. Quando confessa pequenas mentiras, força Casares a separar estratégia de confusão. Ao administrar a própria imagem, ela busca retomar o poder sobre o cotidiano, e essa busca tem custo: cada gesto colhe registro e gera reação processual, muitas vezes desfavorável.

As filhas formam uma força interessada e contraditória. Em reuniões e audiências, trazem extratos, cartas de funcionário e relatos de vizinhança, o que fortalece o pedido de tutela. Ao mesmo tempo, deixam escapar mágoas e disputas antigas que reorientam a leitura da situação. Quando uma irmã insiste em proteger o patrimônio, a motivação ganha contorno patrimonial. Quando a outra invoca episódios íntimos, o caso se aproxima de moralidade e controle de comportamento. O perito precisa separar cuidado legítimo de vigilância, sempre com o prazo correndo.

Coadjuvantes compõem o ambiente institucional. Um médico da clínica sustenta a internação com termos técnicos, um advogado pauta as filhas, funcionários descrevem rotinas do quarto e do corredor. Cada depoimento não só informa, mas reescreve a lista de tarefas de Casares. Diante de uma assinatura contestada, ele precisa confirmar autenticação. Ao encontrar divergências entre exames, precisa pedir contraprova. O andamento inclui visitas à residência de Martha, reconstituições de eventos citados no processo e verificação de testemunhos, com impacto direto no futuro da personagem.

As escolhas de Hendler de encenação e atuação afetam foco e tempo. Em entrevistas, a câmera se fixa nos rostos e permite que hesitações e autocorreções mudem a leitura sobre sanidade e autonomia. Em momentos de revisão de documentos, cortes comprimem dias e destacam a contagem regressiva, sinalizando que o tempo pesa mais do que a retórica das partes. Sons de avisos, passos e portas reforçam a condição de Martha como pessoa sob custódia, o que altera a leitura de cada resposta que ela dá, já que a fala passa a carregar o peso de quem depende de um parecer.

Marilú Marini constrói Martha com gesto calculado que desloca sentidos. Em respostas secas, desmonta narrativas de decadência e obriga o perito a verificar o contexto do que foi dito sobre ela. Em pausas longas, após perguntas invasivas, sugere cálculo e preservação de intimidade, o que mantém aberto o debate sobre capacidade e vontade. Hendler, como Casares, adota contenção e atenção meticulosa a detalhe. Ao repetir uma pergunta e ajustar a ordem das informações, indica prudência e cuidado com inferências precipitadas, estratégia que aumenta a credibilidade do laudo diante do juiz que o lerá.

Os diálogos servem à coleta de dados e ao confronto de versões. Em cabine de avaliação, uma pergunta sobre datas reconstitui cronologias que afetam a acusação de confusão mental. Em conversa com funcionários, um detalhe de rotina desmonta a ideia de perigo iminente atribuída a Martha. Em encontro com as filhas, um termo jurídico deslocado anuncia que o processo inclui ambições que não se limitam à saúde. Quando alguém se contradiz, a contradição não fica como ornamento, vira pista que gera ação seguinte.

A progressão dramática se dá por viradas legíveis e verificáveis. Entra um documento antigo que desafia os relatórios mais recentes, aparecem mensagens que indicam disputa por bens, aparece um episódio na clínica que coloca a instituição em xeque. Diante de cada peça nova, Casares precisa decidir se amplia a investigação, se pede perícia independente ou se confronta diretamente a parte que forneceu a informação. A cada escolha, a margem de erro se estreita, e a responsabilidade sobre o destino de Martha cresce de modo proporcional.

O momento de maior pressão está na redação e na entrega do parecer. O texto assinado define o próximo ato do juiz e altera a manhã seguinte de Martha. A sequência fixa três elementos em jogo, sem revelar a resolução: risco concreto de prolongar uma privação de liberdade, possibilidade real de alta com consequências familiares e a perspectiva de responsabilização do Estado por eventual falha. O filme encerra o arco no instante em que uma assinatura transforma fatos em decisão, deixando aberto o debate público que o caso convoca.

Comparações ajudam a dimensionar a estratégia narrativa. Assim como em “Ela” e “A Filha Perdida”, títulos que assumem conflito íntimo com efeitos sociais claros, “27 Noites” parte de um núcleo familiar para discutir mediações institucionais. A diferença é a aposta em procedimento, com cenas que sempre deslocam objetivo, risco ou tempo. Nada existe para ilustrar tema abstrato. Cada passo tem função, cada documento altera a posição das peças, cada fala se mede por consequência.

Sem depender de arroubos ou discursos moralizantes, “27 Noites” se sustenta em fatos e escolhas de personagens. A tensão nasce de prazos, protocolos e decisões verificáveis, e o interesse do filme passa pelo que acontece quando uma vida vira objeto de processo. Estreou em 19 de setembro de 2025 no Festival de San Sebastián. A narrativa encerra no instante em que a responsabilidade sai do círculo familiar e se torna ato administrativo, mantendo em aberto a pergunta que sustenta cada decisão: quem assume o custo de errar quando se decide sobre a liberdade de outra pessoa?

Filme: 27 Noites
Diretor: Daniel Hendler
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★