Uma tradutora viúva e mãe solo em Paris tenta conciliar as visitas ao pai, cada vez mais dependente por causa de uma doença neurodegenerativa, com um reencontro amoroso que a retira da rotina prudente. Entre conduzir a filha à escola, traduzir livros e lidar com a burocracia das instituições de longa permanência, a protagonista descobre que administrar o cuidado e o desejo no mesmo dia exige fôlego e escolhas que nem sempre cabem no calendário. Lançado no Brasil como “Uma Bela Manhã”, o longa tem direção de Mia Hansen-Løve e atuações de Léa Seydoux, Melvil Poupaud, Pascal Greggory e Nicole Garcia, elenco que sustenta a história com atenção aos gestos pequenos e às pausas que dizem mais do que palavras.
Seydoux interpreta Sandra com naturalidade rara, sem ênfase calculada. O rosto atento, os silêncios antes de responder, a pressa controlada no corredor do hospital e no metrô compõem uma mulher que aprende a administrar urgências. O romance reaberto não se apresenta como fuga, e sim como possibilidade de respirar depois de semanas pesadas. Poupaud vive o amigo e amante, homem casado e dividido, sem caricatura. Ele tem profissão exigente, família estabelecida e limites instáveis, o que transforma cada encontro em um acordo precário. Nada ali soa programado; as cenas caminham com o ritmo do dia comum, como quem tenta achar meia hora livre entre duas obrigações.
O pai, vivido por Pascal Greggory, é apresentado com dignidade. Ex-professor de filosofia, ele perde nomes, endereços, referências, e aos poucos a biblioteca que o definia se transforma em caixas destinadas a parentes e sebos. A relação entre pai e filha carrega ternura e constrangimento, porque o cuidado infantiliza e, ao mesmo tempo, pede respeito ao passado daquele homem. Hansen-Løve filma essas visitas sem humilhar a personagem, evitando ênfases chorosas. A câmera observa a hesitação na hora de dar comida, a necessidade de repetir instruções, a fadiga que aparece no olhar de quem ama e precisa insistir. A doença não vira espetáculo; é um estado que altera os vínculos familiares.
O romance paralelo amplia o conflito. Quando Sandra aceita o retorno do desejo, o filme não transforma essa escolha em condenação. Ao contrário, investiga o que significa amar sem garantia, quando os horários não coincidem e as promessas dependem de situações que ninguém controla. Poupaud faz de Clément um companheiro possível e, ao mesmo tempo, um risco emocional. Ele tenta conciliar, volta atrás, avança pouco, e essa movimentação produz um mapa afetivo marcado por desvios e recuos. A protagonista não busca um salvador, mas alguém disposto a dividir dúvidas e cuidados. Quando isso falha, a narrativa registra a frustração sem julgamentos.
Hansen-Løve prefere a luz natural, a proximidade respeitosa, os diálogos que cabem em apartamentos apertados. A direção valoriza corredores, escadas e parques, espaços onde se negocia a passagem de um compromisso a outro. A montagem evita sublinhados e confia ao espectador a ligação entre cenas, sem pressa de explicar. Não há pressões musicais para guiar emoções; quando a trilha aparece, funciona como lembrança e respiração breve. O figurino e o desenho de produção apostam na discrição: casacos, mochilas, pilhas de livros, sacolas de supermercado, tudo em chave cotidiana, coerente com a vida de uma trabalhadora que mede o mês pelo calendário escolar e pelas visitas ao pai.
O roteiro acompanha a experiência de alguém que vê a própria autonomia comprimida pela responsabilidade, tema caro à diretora desde “O Que Está por Vir”. Se naquele filme Isabelle Huppert encarava uma sucessão de mudanças, aqui a protagonista enfrenta a erosão lenta provocada pela doença de um parente e a indecisão do parceiro. A diferença está no ponto de vista: em “Uma Bela Manhã”, a maternidade e o cuidado filial ocupam o centro, e o romance se ajusta a esse eixo com idas e vindas que lembram a vida real. A comparação com “A Ilha de Bergman” também ajuda a mapear interesses da cineasta, agora mais focada na cidade e na família do que na criação artística.
As atuações secundárias reforçam a verossimilhança. A mãe de Sandra, separada do ex-marido doente, tenta ajudar sem retomar alianças antigas. Os profissionais das instituições orientam procedimentos com praticidade às vezes dura, mas necessária para quem precisa de vaga, laudo e assinatura. A irmã, quando aparece, representa o debate entre repartir despesas e dividir tempo, discussão comum em famílias que lidam com dependência prolongada. Ninguém ali é vilão. Todos estão presos a calendários, contas e limites da paciência, o que dá ao filme uma dimensão social concreta.
Paris aparece como circuito de deslocamentos: metrô, ruas, apartamentos pequenos, parques onde se respira por alguns minutos antes de outro compromisso. Ao evitar cartões-postais, a direção mantém foco nas tarefas que compõem o dia de Sandra. O cuidado com o pai exige documentação, visitas, conversas sem garantia de avanço; o trabalho de tradução cobra prazos; a filha pede atenção; o romance pede coragem para aceitar a instabilidade. A protagonista se equilibra como pode, e o filme observa essa tentativa sem julgar.
Há, aqui, uma ideia de continuidade que não ignora perda. O amor pelo pai se reinventa quando a memória dele falha. O desejo por um parceiro que não está totalmente disponível encontra limites práticos e éticos. A maternidade segue, com pequenos pactos e improvisos. Em “Uma Bela Manhã”, nada resolve tudo; algumas respostas chegam, outras se adiam. A última sensação é a de uma vida que se reorganiza lenta, teimosamente, à medida que o tempo impõe novas regras. Essa persistência discreta permanece quando as luzes da sala acendem e lembra que certas mudanças acontecem na velocidade do cotidiano.
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