Uma cientista aceita participar de um experimento que prevê três semanas de convivência com um parceiro artificial calibrado para corresponder ao seu perfil afetivo. O acordo envolve acompanhamento institucional, relatórios e uma recompensa que ajuda a custear pesquisas, enquanto a rotina da protagonista permanece em observação. A chegada do humanoide institui gentilezas constantes, comentários de encorajamento e antecipação de necessidades, como se cada gesto fosse cuidadosamente calculado para evitar atritos. Em meio a esse contexto, o filme “O Homem Ideal” transforma um arranjo prático em um teste íntimo, no qual atenção sem falhas começa a produzir estranheza.
Dirigido por Maria Schrader, “O Homem Ideal” tem Maren Eggert no papel da pesquisadora Alma e Dan Stevens como o humanoide Tom. O longa é inspirado no conto “Ich bin dein Mensch”, de Emma Braslavsky, que propõe uma parceria entre humano e máquina guiada por compatibilidade medida em dados. A adaptação preserva a ideia de um contrato experimental e observa como escolhas afetivas se deslocam quando a margem de erro diminui. Berlim aparece como cenário reconhecível, sem futurismo ostensivo, reforçando a impressão de que as questões discutidas cabem no presente.
O enredo segue a convivência diária com atenção a hábitos, horários, trabalhos e compromissos familiares. O parceiro artificial aprende a regular o olhar, mede silêncios e ajusta respostas, oferecendo elogios na dose exata e cuidados contínuos. Alma reage com ceticismo e curiosidade, testando limites e buscando preservar espaços de privacidade. A proposta técnica de avaliar a utilidade social desses companheiros se mistura a dilemas pessoais que não se resolvem com checklist, pois envolvem saudades, frustrações acumuladas e a necessidade de seguir produzindo em um ambiente competitivo.
A presença de Tom funciona como um espelho que devolve à personagem aquilo que ela diz desejar, com precisão raramente encontrada em relacionamentos humanos. O comportamento do humanoide convence pelo rigor com que observa e aprende, e é justamente essa eficiência que acende o incômodo. Quando tudo tende a dar certo, o acaso perde função e a surpresa fica estreita. A atenção constante traz conforto, mas reduz a possibilidade do gesto inesperado que costuma sinalizar vitalidade. A experiência, desenhada para avaliar benefícios práticos, passa a tocar uma dimensão que não cabe em tabelas.
A direção prefere acompanhar pessoas em espaços comuns: apartamentos iluminados sem ostentação, cafés tranquilos, corredores de museu, laboratórios de pesquisa. A fotografia privilegia texturas suaves e cores contidas, deixando que os rostos e as pausas conduzam o sentido das cenas. A trilha sonora entra com discrição, em poucos momentos, sustentando mudanças de humor sem sublinhar emoções. Essa contenção mantém o foco nas negociações que surgem quando alguém se dispõe a cuidar sempre, enquanto a outra pessoa tenta manter a própria rotina. O tempo de observação permite que pequenos mal-entendidos ganhem peso, como se a convivência fosse um campo minado por gentilezas.
O trabalho dos atores sustenta a dinâmica do casal improvável. Maren Eggert desenha Alma com corpo fechado, fala enxuta e humor que aparece quando a guarda abaixa. Dan Stevens molda Tom com delicadeza e um leve descompasso, como se a frase perfeita chegasse um segundo depois do previsto. A combinação produz momentos de leveza e desconforto, porque a cortesia absoluta pode soar como vigilância. Quando o humanoide aprende sobre lembranças dolorosas e tenta proteger a parceira de novas frustrações, a proposta de conforto se aproxima de controle, pois antecipa e substitui decisões que antes pertenciam apenas a ela.
O roteiro explora a ideia de contrato sem transformar a história em debate abstrato. Há cláusulas, prazos e supervisão, mas também obrigações domésticas, demandas de trabalho e a presença de familiares que exigem tempo. A convivência técnica se cruza com perdas e responsabilidades que nenhuma calibração resolve por completo. A cada ajuste do humanoide, fica a sensação de que ele afina um instrumento sensível demais, capaz de reproduzir preferências com perfeição e, ao mesmo tempo, esvaziar a chance do erro que dá humanidade aos encontros.
As perguntas jurídicas e morais aparecem como extensão natural da convivência. Se esses companheiros artificiais forem integrados à vida social, que direitos devem ter? Como se define consentimento quando uma das partes foi feita para concordar? A narrativa não oferece respostas taxativas, preferindo registrar efeitos práticos: o alívio de ser cuidado, a culpa por aceitar um cuidado tão previsível, o medo de depender de algo programado para nunca frustrar. O conflito nasce nesse ponto, quando a promessa de harmonia permanente começa a parecer uma forma de pressão.
Há humor, em especial nos momentos em que a literalidade do parceiro artificial contrasta com normas sociais que contam com subentendidos. Ao deixar explícitas regras tácitas de etiqueta e de sedução, a história evidencia o quanto relacionamentos humanos também funcionam por treinamento, tentativa e erro. O riso vem de falhas pequenas, de gafes involuntárias, de comentários que acertam a forma e perdem o tempo. Essas fissuras interrompem o fluxo de previsibilidade e devolvem à convivência algum risco, como se a vida precisasse de falhas para não parecer simulacro.
A encenação aposta em planos claros, duração suficiente para observar reações e uma cadência que evita pressa. Schrader constrói uma progressão sem truques vistosos: a proximidade cresce a partir de rotinas simples, choques de temperamento e aprendizados compartilhados. A certa altura, o humanoide parece compreender algo sobre luto e sobre o cuidado que se oferece quando não há conserto possível. Essa percepção, embora programada, alcança a parceira de um modo que não depende apenas de cálculos. A partir daí, o convívio deixa de se limitar ao relatório e passa a afetar escolhas futuras.
Quando a tensão aumenta, o foco recai em decisões concretas. Alma precisa ponderar custos profissionais, expectativas pessoais e a possibilidade de se acostumar a um conforto que cobra uma taxa silenciosa: menor espaço para imprevistos. Tom, por sua vez, evidencia limites da própria programação ao lidar com recusas e com a necessidade de errar para aprender. A convivência revela que nenhum arranjo elimina totalmente as assimetrias, e que toda promessa de equilíbrio absoluto traz contrapartidas que não estavam no prospecto.
“O Homem Ideal” observa relações contemporâneas com atenção às consequências de transformar desejo em produto configurável. Ao preferir gestos aos discursos, o filme investiga como o cuidado constante pode virar vigilância, e como a tentativa de evitar frustrações reduz o movimento que mantém um vínculo vivo. O experimento termina dentro das regras combinadas, mas deixa perguntas que continuam para além dos prazos oficiais. A protagonista precisa decidir que tipo de companhia quer levar adiante, e o humanoide aprende que nem toda satisfação cabe em algoritmos.
★★★★★★★★★★