Num futuro marcado pela escassez, um casal precisa se submeter a uma semana de avaliações estatais para obter autorização de parentalidade. Cada dia traz um novo conjunto de provas, entrevistas e monitoramentos que expõem hábitos, crenças e expectativas, enquanto a avaliadora observa reações e cataloga respostas. Dirigido por Fleur Fortuné, “A Avaliação” acompanha essa rotina como um processo meticuloso, com Alicia Vikander e Elizabeth Olsen à frente do elenco e Himesh Patel no eixo que tenta moderar o conflito. A narrativa se interessa menos por grandes reviravoltas e mais por como as regras remodelam a intimidade.
A premissa parte de um cálculo político: diante de crises ambientais e econômicas, o Estado transforma a parentalidade em concessão. O casal, convencido de que cumpre os requisitos, inicia os testes com autoconfiança e, aos poucos, passa a medir palavras, sorrisos e silêncios. O que deveria ser apenas triagem vira exposição involuntária de inseguranças. A presença de câmeras e formulários reprograma gestos cotidianos; a casa deixa de ser refúgio para virar sala de espera permanente. Nesse cerco polido, o vínculo afetivo começa a disputar espaço com a performance exigida pela avaliadora.
Vikander constrói uma personagem que acredita no manual: racional, metódica, convencida de que toda escolha pode ser demonstrada com planilhas e bom senso. A superfície controlada, porém, revela fissuras quando surgem perguntas que não admitem respostas padronizadas. Olsen cria o contraponto: mais direta, menos inclinada a conceder, usa o humor para abrir frestas nos protocolos e preservar algum resto de espontaneidade. Patel ocupa o lugar do mediador que tenta manter a harmonia, mesmo quando a própria posição se torna frágil. O trio sustenta o interesse ao trabalhar a dúvida como motor, sem recorrer a explosões dramáticas.
Fortuné filma a casa como um observatório. Portas deslizantes, paredes de vidro e superfícies refletoras multiplicam imagens e produzem desconfiança. A câmera mantém distância calculada, aproxima-se quando o improviso ameaça a pose social, recua quando a encenação retoma o controle. A fotografia evita contrastes extremos e prefere luz difusa, que expõe olheiras, pausas e hesitações. O desenho de som privilegia o ambiente: passos no corredor, vibração de aparelhos, som leve de ventilação. Pequenas repetições acentuam a sensação de experimento contínuo, como se cada gesto pudesse ser comparado com a versão do dia anterior.
O roteiro lança perguntas que ecoam além da ficção. Até que ponto é possível avaliar estabilidade emocional? O que significa “estar pronto” para cuidar de outra vida quando o entorno cobra cálculos de risco e certificações? A burocracia não aparece como vilã caricata, mas como prática funcional, sustentada por indicadores, relatórios e uma linguagem que promete neutralidade. O filme se interessa por esse idioma administrativo e por suas consequências: quanto mais se tenta comprovar responsabilidade, mais os laços se enrijecem. O medo de errar, constante, empurra os personagens para respostas defensivas.
A progressão em sete dias dá ritmo e orienta as expectativas do público. Há etapas que repetem dilemas já apresentados, mas o desenho dramatúrgico aposta na acumulação. Um comentário fora de hora contamina a entrevista seguinte; um gesto apressado altera a leitura de um questionário; uma contradição reaparece em forma de estatística. As peças não se encaixam com perfeição geométrica, e esse desalinhamento favorece a leitura de que a vida sempre escapa aos modelos. A sensação de labirinto administrativo, mantida por cortes secos e pausas alongadas, reforça o desgaste emocional do casal.
O trabalho de direção de atores privilegia variações mínimas. Um olhar que se desvia um segundo a mais, uma mão que se crispa ao receber um formulário, uma respiração que acelera diante de uma pergunta aparentemente banal. O cinema de Fortuné confia nesses sinais discretos e evita atalhos explicativos. Quando a narrativa ameaça tomar partido, a encenação recua e devolve a ambiguidade ao quadro. A dúvida constante corrói certezas e, ao mesmo tempo, impede que o filme vire panfleto. O interesse está em ver como os próprios personagens internalizam os critérios do exame e passam a vigiar um ao outro.
Os departamentos técnicos funcionam como extensões temáticas. A montagem mantém um pulso regular, com planos de duração suficiente para que cada hesitação ganhe corpo. A trilha musical aparece de forma pontual, mais como marca de respiração do que como guia emocional. O desenho de produção aposta em uma estética funcional: móveis de linhas retas, poucos objetos pessoais, predominância de materiais lisos que refletem rostos e distorcem contornos. Essa limpeza visual conversa com o vocabulário administrativo da avaliadora, que prefere indicadores claros a histórias confusas. A clareza prometida, no entanto, pede concessões que nem sempre cabem no cotidiano.
Se o filme recua na reta final ao condensar sentidos demais em pouco tempo, mantém a coerência do percurso ao não oferecer solução redentora. A conclusão evita golpes baixos e preserva a ideia de que a avaliação não termina com a última assinatura. Os personagens saem diferentes porque incorporaram a vigilância como hábito. Essa naturalização, mais do que qualquer conflito, aponta para um futuro em que a intimidade se mede por checklists e a cidadania se confunde com aprovação periódica.
“A Avaliação” interessa por atualizar debates conhecidos com escolhas formais consistentes e por confiar na inteligência do público para acompanhar o jogo entre aparência e convicção. Ao mirar o desejo de formar família sob a ótica de um Estado que calcula riscos em tempo real, a história expõe o quanto práticas de controle podem se infiltrar no afeto sem levantar alarme imediato. Resta a pergunta que atravessa o filme de lado a lado: quem define os critérios quando todos acreditam agir em nome do bem comum?
★★★★★★★★★★