À medida que o corpo impõe limites e o tempo vira um inimigo cruel, somos levados a repensar o que podemos querer do futuro. Nesse estágio da vida, o livre-arbítrio é um privilégio que nem todos alcançam, mesmo que o desejo por uma autonomia qualquer nunca morra. Ficar velho exige adaptações e autossacrifícios, mas há também reviravoltas nada edificantes que colocam à prova o gênio mais inabalável. Martha Hoffman, a protagonista de “27 Noites”, tem aproveitado tudo quanto sua fortuna pode lhe proporcionar, até que sofre um duro revés. O uruguaio Daniel Hendler urde um drama de família suave, mas incisivo, acerca da relação entre dinheiro e caráter, deixando espaço para uma análise perturbadora sobre a verdadeira loucura e a falsa lucidez. Inspirados no romance homônimo da escritora e psicanalista Natalia Zito, de 2021, Hendler e os corroteiristas Agustina Liendo, Mariano Llinás e Martin Maureguí remexem o caso real de uma mulher compulsoriamente internada num manicômio pelas filhas. A partir desse ponto, começa uma guerra de nervos ao longo da qual todo riso traz uma névoa de mal-estar.
Aos 83 anos, Martha é uma ricaça sem culpa. Seus amigos dizem que ela morou em Paris com Pina Bausch (1940-2009) na decada de 1950, e sua história vai se compondo dessas mitologias saborosas, que ela faz questão de galvanizar. Ela anda com um grupo de artistas bem mais jovens, o dinheiro começa a minguar e então Miriam e Olga passam a exigir-lhe satisfações. Pouco tempo depois, ela troca seu palacete em San Telmo, um bairro na área nobre de Buenos Aires, por um quarto modesto numa instituição psiquiátrica, enquanto as herdeiras tomam as providências que julgam convenientes — para si mesmas, por óbvio. Sem dúvida, a afinidade do elenco é um dos pontos fortes do longa, e Hendler tira todo proveito que consegue das cenas em que Marilú Marini, Paula Grinszpan e Carla Peterson aparecem juntas. E o que é bom sempre melhorar, especialmente numa produção argentina.
Leandro Gabriel Casares, um perito designado pelo Tribunal de Justiça portenho, averigua o suposto desequilíbrio mental de Martha, recém-saída do isolamento pelo intervalo a que o título alude, e o filme ganha um colorido adicional. É Leandro quem determinará se ela é capaz de tocar sua própria vida e, claro, gerir o patrimônio nababesco, valendo-se das notas com que enche um caderno. Não podem haver duas pessoas tão diferentes quanto esse homem doce e sóbrio e sua cobaia, uma senhora de bons modos, mas que não faz concessões a respeito da forma como quer gastar seus últimos anos, e o enredo segue essa trilha, desmembrando-se em narrativas colaterais, mas perspicazes, que tiram o véu do etarismo e dos estratagemas covardes de Miriam e Olga para embolsar a gorda herança que ainda não lhes pertence. O inusitado vínculo entre Martha e Leandro é o filme dentro do filme, e Marini e o multitarefas Hendler, dão conta do recado. O diretor alcança uma sofisticação que talvez nem buscasse, concentrando-se na beleza difusa do relacionamento de seu personagem com a apaixonante dondoca libertária de Marini. Martha Hoffman levou suas excentricidades até os 104 anos. Seu caso inspirou mudanças nas leis argentinas, que passou a vedar internações à força.
★★★★★★★★★★