O Monstro e Outras Histórias: Stephen Crane e o espelho cruel da humanidade

O Monstro e Outras Histórias: Stephen Crane e o espelho cruel da humanidade

A literatura precoce de Stephen Crane faz pensar uma coisa essencial: em que momento da vida estamos suficientemente maduros para dar uma contribuição relevante. Em qualquer área do conhecimento humano, não há dúvidas, a boa formação é necessária para um perfeito desenvolvimento. É necessário, ainda, o conhecimento acumulado, o domínio intelectual da literatura pré-existente, para que um salto estilístico seja devidamente efetuado. Stephen já escrevia aos 13 anos de idade. Também fumava e bebia, o que caracteriza uma atitude precoce para as coisas do conhecimento e do mundo. Nada mais justo para alguém que quer contar aos outros as proezas dos humanos, suas agruras e acidentes ocasionais. A natureza humana das ações e suas consequências foi muito bem entendida por esse jovem escritor que morreu também precocemente, tinha apenas 28 anos.

Stephen Crane
O Monstro e Outras Histórias, de Stephen Crane (Carambaia, 200 páginas)

“O Monstro”, conto homônimo, é um misto literário complexo. O conto é uma perspectiva fria e cruel de uma realidade atemporal. É a visão de um jovem que não permite subterfúgios e concessões. Numa cidade pequena, um homem negro, Henry Johnson, tem o rosto desfigurado em um incêndio quando salva a vida de Jim, o filho de seu patrão, um médico proeminente e respeitado, o dr. Trescott. Crane constrói sua personagem de duas maneiras bastante distintas. Primeiro, desenvolve sua personalidade com detalhes, mostrando sua inteligência incomum, seu estilo pessoal excêntrico e austero, seus objetivos e trabalho, a expectativa do noivado e a relação com as pessoas da cidade. Crane antecipa a reflexão sobre a desumanização que atravessaria o século 20. Num momento da história em que o comportamento racista era algo de elevadas proporções, Crane parece dizer que Henry tem o respeito das pessoas de sua cidade e amigos de todas as ordens, tipos e culturas. Henry tem domínio de suas ações, e seu comportamento é peculiar e original. A cidade se detém nessa manifestação. Em tudo, é uma personagem muito interessante e magnética. Henry, relegado aos trabalhos subalternos da casa do médico, tem conhecimentos completos de sua função, para além do necessário, e é amigo de Jim. “Os dois eram grandes amigos. Em relação a quase tudo na vida, pareciam pensar exatamente do mesmo jeito.”

A descrição intensa de Henry passa pela visão de Jimmie, que o admira e segue. Orgulhoso de si, Henry distribui conhecimentos baseados em sua experiência de vida, onde mistura pecados de seu passado à firmeza de lições duras ao garoto que o busca para conforto de suas próprias decepções e agruras. O pai, o médico Trescott, figura importante na primeira parte do conto, serve como um norteador da amizade do menino e seu mestre.

Segundo, acontece um incêndio na casa do doutor. Henry tem o rosto dilacerado por cacos de vidro que o rasgam. Quase morre, mas, em um ato de heroísmo, salva Jim da morte certa. Os dois são resgatados pelo médico e pelos bombeiros, mas Henry fica totalmente prejudicado. Aqui começa a se desenvolver uma história completamente diferente. Crane aplica seus conhecimentos de suspense, drama e até de histórias infantis para tirar Henry do centro da trama e colocar a cidade de Whilomville e seus habitantes como tema principal. Depois de um tempo de tratamento severo, sob os cuidados do Dr. Trescott, que se sente responsável por Henry, ele se cura, mas seu rosto fica desfigurado e sua mente perturbada. A partir desse ponto, Crane levanta uma discussão totalmente atual e relevante.

Na cidade, as pessoas começam a tecer teorias equivocadas sobre Henry e o médico, elaboram teses mirabolantes, chamam-no de monstro, dizem que é a encarnação do diabo. Trescott encontra um lugar para ele viver, sob a proteção e os cuidados de uma família que recebe um ordenado para tomar conta de Henry e de suas necessidades. A família tem medo de seu comportamento perturbador. O caso é que as pessoas temem o desconhecido e o diferente. Henry não parece mais humano, pois já não possui um rosto conforme os atributos fundamentais da anatomia ou do senso comum. Sua forma se distanciou da forma concebida por todos e suas ações estão distantes daquelas de outrora que o identificavam como humano. Os habitantes se comportam, cada um a sua maneira, como os observadores de uma aberração, de um alien, de um ser completamente desprovido de humanidade e alheio ao mundo em que vivem. Ele é rechaçado por todos, especialmente por aqueles que lhe eram próximos. A consequência é o afastamento do médico e de sua família do convívio normal, pois estes também são julgados por protegerem o absurdo inumano que o Dr. Trescott, de maneira “irresponsável”, criou. O conto sugere que a diferença só é tolerada até o limite do conforto social.

Um debate espetacular é imaginado por Crane. Elementos múltiplos da conduta humana são explorados, a saber: o preconceito, tema central; a ganância, para cuidar de Henry a família escolhida por Trescott diz que o justo para tal tarefa terrível é receber mais e melhor; o julgamento por uma escolha que isola, como a feita pelo doutor de curar e manter vivo o “monstro”; e a intenção de que é melhor tirar a vida do que deixar que alguém viva nas condições lamentáveis de Henry. Aqui, o olhar coletivo pesa mais que qualquer gesto individual.

Mais curiosos e interessantes são o primeiro e o último tópico. No primeiro, Crane apresenta a ideia de que podemos aceitar a diversidade desde que o diferente não destoe tanto do que nossos preconceitos entendem como humano. O absurdo dessa noção é elaborado pelo autor de forma crua, direta, sem comiseração ou piedade. Crane não mede palavras nem protege seus personagens. Deixa que se submetam ao mundo que os rodeia sem redenção ou alegrias. O mundo é realmente cruel. Seu pessimismo tem função de informar, de educar, mas sem a doçura de historietas fáceis e óbvias. O estilo de Crane aproxima o conto mais da crônica cruel que da fábula moral. Aliás, o final desolador desse conto é seu grande trunfo. Sobre o último, o conto apresenta uma discussão tensa entre o médico Trescott e o juiz Denning Hagenthorpe, que cede sua casa para moradia da família após a tragédia que os deixou sem teto, sobre a possibilidade de matar Henry para que ele não viva como um moribundo sem rosto e amedrontador. A escolha de criar um monstro, oriunda da culpa e da obrigação, eleva o tema do que é humano ao máximo, determinando a ideia de que a melhor solução para o diferente e incompreensível seja a eliminação. Uma decisão fácil, como aquelas dos incautos ou neófitos na paternidade que vislumbram a destruição, por exemplo, de um filho especial, por não terem domínio suficiente de competência e maturidade para entender o que é aparentemente incompreensível para eles. Em certa altura Trescott diz: “Ele será o que quiser, juiz! […] Ele será qualquer coisa, mas, por Deus! Ele salvou o meu menino”. Um Jean Valjean inconcebível. Ainda, parece ter algum parentesco com a criatura de Frankenstein, mas Crane avança. Seu contexto é mais realista, e é mais preciso que o bisturi da personagem de Shelley.

O monstro não é Henry, mas o espelho deformado que a cidade projeta sobre ele. Jim, que era o amigo, é um garoto que precisa provar sua importância. Em um trecho que parece caminhar para um rito de passagem, o garoto é desafiado pelos seus amigos a provocar o “monstro” e aqui, saudoso de um passado que não volta, mas alegre por existir uma condição que o enaltece no grupo, Jim deixa as boas lembranças para trair o amigo em prol de sua vaidade. Essa é a derradeira humanidade de Henry que se esvai como a canção melancólica que ele, demente e sereno, entoa.

“O Monstro” é um compêndio de boas premissas filosóficas, sociais e comportamentais. É uma visita a uma mente que, se tivesse vivido mais, poderia ter se tornado um dos maiores escritores americanos de todos os tempos. Assim, “O Monstro” não é apenas uma ficção sobre um corpo deformado, mas sobre uma sociedade incapaz de conviver com o que desafia seus limites de aceitação. A força do conto está em revelar o abismo entre humanidade e desumanização, e é aí que reside a atualidade de Stephen Crane: lembrar-nos de que o verdadeiro monstro talvez não esteja na vítima, mas no olhar coletivo que a condena.

Livro: O monstro e outras histórias
Autor: Stephen Crane
Tradução: Jayme da Costa Pinto
Páginas: 200 páginas
Editora: Carambaia
Nota: 8,5/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.