Steven Soderbergh aprendeu a trabalhar com o que cabe nas mãos. Adolescente em Baton Rouge, fitas empoeiradas, papel quadriculado, a necessidade de desenhar a ideia antes que ela evapore. Quando “Sexo, Mentiras e Videotape” recebe a Palma de Ouro em 1989, o circuito independente americano entende que intimidade e precisão podem circular com força; a partir dali, o diretor passa a alternar dimensões, ora pequeno e obstinado, ora amplo e luminoso. A cada virada, uma fisionomia técnica distinta, e ainda assim um pulso reconhecível, discreto, teimoso.
Nos anos seguintes, Soderbergh testa ritmos, ironias, formatos. “Schizopolis” abre espaço para o absurdo, montagem elástica, piadas que dobram a própria gramática; “Irresistível Paixão” reintroduz o romance policial com uma elegância inclinada, personagens que falam menos do que olham; “Erin Brockovich” fixa no rosto de Julia Roberts a obstinação e a ternura de um acerto tardio; “Traffic” encadeia linhas de ação com filtros e tonalidades que orientam a percepção do espectador, uma cartografia moral desenhada plano a plano. Em 2001, “Onze Homens e um Segredo” entrega um heist filme-lâmina, corte limpo, humor de aresta polida; poucos anos depois, “Doze Homens e Outro Segredo” desloca o eixo e troca o brilho solar por uma claridade oblíqua.
A aposta de “Doze Homens e Outro Segredo” é simples no papel e complexa no ar. A quadrilha abandona Las Vegas e espraia a coreografia por Roma, Amsterdã, Paris. Os golpes importam menos que o desenho da convivência, e a graça dos encontros toma a frente do manual de truques. Há cenas que dobram a fronteira entre ficção e presença, uma atriz que visita a própria imagem, uma piada vazada por entre biografias e contratos. O riso que se instala não remove a tensão; apenas desloca o foco para um tipo de inteligência que trabalha pelo avesso, que prepara o terreno antes de plantar a pegada.
A fotografia observa por trás, escuta portas, registra corredores longos que prometem desvios. Soderbergh gosta de esconder a exatidão sob aparente leveza, deixa que um travelling expire no ponto certo e que uma paleta levemente desbotada conte a idade das pedras. A edição, comedida, dá ao espectador o prazer da elipse, aquele pequeno vazio que pede participação e devolve cumplicidade. A resultante é um clima que se sustenta sozinho; trama e atmosfera respiram juntas, sem empurrões explicativos, sem falas que carreguem o peso que a imagem já suporta.
A recepção de 2004 dividiu simpatias, e a divisão ajuda a ler o filme. De um lado, quem esperava a repetição ampliada do primeiro capítulo; de outro, quem preferia a deriva calculada, a aposta num tom de salão europeu, cartas marcadas e risos de canto de boca. “Doze Homens e Outro Segredo” não pede unanimidade; pede atenção ao passo lateral, à confiança entre parceiros, às pequenas humilhações que fazem parte de um ofício fundado em blefes. O heist, aqui, interessa menos como engenharia de cofre e mais como estudo de grupo, um retrato do intervalo entre o plano e o improviso.
No arco biográfico, o filme é testemunho de um temperamento. Soderbergh costuma acumular funções, assina fotografia, aproxima a mão de quem dirige da mão de quem finaliza o brilho no quadro. Essa proximidade produz unidade: no set, a conversa entre câmera e corte se resolve sem cerimônia, a luz responde à lógica de movimento; no estúdio, a montagem respeita os respiradouros do que foi visto. A ambição não é tamanho; é controle de temperatura, feixes de atenção com destino certo. A partir desse artesanato calado, a filmografia encontra consistência em meios diversos.
A contextualização histórica pede um passo atrás. O cinema americano dos anos 1990 equilibra reinvenções modestas e o crescimento de apostas industriais colossais. “Sexo, Mentiras e Videotape” abre uma clareira para filmes de orçamento contido, atentos ao detalhe; “Traffic” prova que escala e rigor não se excluem; “Onze Homens e um Segredo” organiza luxo sem anestesia; “Doze Homens e Outro Segredo” brinca com o próprio contrato de entretenimento de estúdio, dobra expectativas, espalha o elenco por cidades que oferecem texturas e línguas, transfere parte do prazer para o passeio. Mais adiante, “Contágio” recorre a um léxico quase clínico, clima de relatório que não larga o drama; “Kimi” escava a ansiedade tecnológica em ambientes apertados; “Sem Movimentos Bruscos” desce a Detroit de décadas passadas e encontra nas dobras do trabalho uma ética dura. Entre esses pontos, “Deixe-os Todos Falarem” expõe conversas em maré constante, o navio como cidade temporária, atores em estado de observação.
Em “Doze Homens e Outro Segredo”, Soderbergh aceita o risco do equívoco e o transforma em estética. O plano que o espectador não vê, a informação atrasada, o desfecho que reescreve a origem; nessas passagens, o filme conversa com escolas europeias que tratam o delito como partitura, e também com a cultura visual dos anos 2000, clipes e vinhetas que ajustam a pulsação do corte à música. O resultado não é um truque vistoso, é uma rede de pequenos acertos de tom; o charme não recobre o vazio, sustenta uma ética de jogo compartilhado.
Importa notar a delicadeza com que o diretor filma a graça. O humor aparece sem contornos fluorescentes, fiel ao gesto de quem sabe que a piada só existe porque houve trabalho antes, marcação exata de portas, de olhares, de silêncios. Catherine Zeta-Jones atravessa um aeroporto com precisão de bússola; Matt Damon oferece uma hesitação calculada; George Clooney e Brad Pitt ocupam a moldura com um tipo de preguiça elegante que depende de rigor extremo. Tudo parece casual; nada é gratuito.
A crítica que preferiu reduzir o filme a esperteza subestimou o interesse pela convivência. O grupo volta a se reunir e, na reunião, reencontra um idioma. Esse idioma atravessa fronteiras, troca moedas, atravessa salas de museu, quartos de hotel, vagões noturnos. O crime, aqui, é menos um fim e mais um meio para que essas presenças se testem, errem, acertem, recuem. Há perdas discretas, há vitórias sem trombeta, há uma nostalgia leve por aquilo que os uniu no primeiro capítulo. Soderbergh enquadra essa nostalgia com parcimônia, recusa açúcar, prefere uma melancolia respirável, um sorriso a meio caminho.
A biografia do diretor, vista em filigrana, aparece ali: uma obstinação por processos mutáveis, o desejo de filmar onde a logística sugere limites, a crença na colaboração como motor. Não cabem slogans, nem sentenças definitivas. Cabem gestos de continuidade, o retorno a parceiros de fotografia, figurino, desenho de produção, montadores que compreendem o pulso do chefe sem precisar traduzi-lo. Na ilha, o filme permanece aberto até perto do fim; no set, a câmera testa posições até achar um eixo que não grita.
Há ainda a dimensão temporal. “Doze Homens e Outro Segredo” nasce num mundo pré-smartphone onipresente, um turismo cinematográfico que atravessa capitais sem ceder ao cartão-postal. Revisitado hoje, não cheira a peça de museu; guarda ar fresco de passeio noturno, conversa baixa, passos firmes. A Europa filmada evita saturações; aceita a pátina do cotidiano; oferece corredores, pequenas praças, quartos modestos em hotéis caros. O olhar não consome, investiga. O golpe se prepara ao ritmo do trem que parte cedo demais e obriga a mala a ficar mais leve.
No fim, a pergunta sobre grandeza perde força. O que interessa é o tipo de atenção que o filme exige, uma escuta para a harmonia interna do conjunto. Soderbergh prefere o detalhe ao manifesto, a nuance à tese. O perfil que se esboça não precisa de proclamação; precisa de cenas que alojam uma ética de trabalho. Quem vê “Doze Homens e Outro Segredo” com o desejo de manual encontrará menos instruções e mais indícios; quem aceita ler os interstícios verá um diretor em estado de liberdade rara no espaço dos estúdios.
Talvez por isso a obra permaneça viva. Não por truques vistosos, mas por um entendimento do que sustenta a relação entre personagens: confiança, cálculo, desconfiança, recombinação. O cinema de Soderbergh se alimenta desses elementos, e cada filme realinha os pesos. “Onze Homens e um Segredo” apresenta; “Doze Homens e Outro Segredo” desvia; os títulos posteriores voltam a puxar o fio por outros lados. O conjunto formado por “Contágio”, “Kimi” e “Sem Movimentos Bruscos” mostra um autor interessado em tensões contemporâneas, mas ancorado na mesma paciência que organiza o olhar desde 1989.
Fecham-se as malas, a equipe se dispersa, a Europa volta à rotina. O espectador deixa a sala com a sensação nítida de ter sido convidado a entrar num salão onde as regras não foram anunciadas, apenas praticadas. O convite permanece, anos depois, intacto. “Doze Homens e Outro Segredo” continua a falar baixo e a contar o indispensável, sem pressa; prefere o caminho oblíquo, o gesto que indica sem explicar. Nessa escolha, reconhece-se o retrato de quem dirige: um artesão da atenção, alguém que entende que cinema também é o intervalo entre dois passos e a memória precisa do brilho que ainda fica no chão.
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