“Josey Wales, o Fora da Lei” começa quando um fazendeiro do Missouri tem a família assassinada por milicianos ligados ao lado vitorioso da guerra. A primeira decisão do protagonista nasce de um fato objetivo: a destruição da casa, a marca no rosto, os corpos que ele precisa enterrar. Diante disso, ele escolhe treinar o uso do revólver e se unir a um bando confederado. A causalidade é clara. O ataque inicial produz a adesão ao grupo armado. Essa adesão leva à etapa seguinte, a rendição proposta a seus companheiros. Wales recusa, o grupo aceita, e a recusa passa a guiar toda a narrativa. Quando a rendição termina em execução, a recusa se prova prudente e cruel ao mesmo tempo, pois o deixa vivo e responsável por carregar o acerto de contas que prometeu a si mesmo.
O objetivo dramático desse ponto até metade do filme é simples e duro: escapar dos perseguidores enquanto elimina, quando possível, os responsáveis pela morte da família e pela emboscada na rendição. Os obstáculos são sucessivos e com motivação concreta. Soldados e caçadores de recompensa o caçam por dinheiro e por dever. O personagem Fletcher, que participou da negociação de rendição, vira contraponto moral. Ele tenta equilibrar a lealdade aos antigos homens e a pressão do novo poder. A presença de Fletcher funciona como régua de consequências. Cada passo de Wales estreita a margem de negociação e empurra o conflito para uma solução que não seja apenas contagem de mortos.
A virada estrutural acontece quando o protagonista, já em rota para o Texas, passa a reunir ao redor de si pessoas vulneráveis que não faziam parte do plano inicial. Um jovem companheiro ferido, um ancião indígena, depois uma avó e sua neta, e mais adiante outras figuras que compõem um núcleo doméstico improvisado. Cada entrada tem função narrativa específica. A presença do ancião expõe contradições de uma fronteira em que ex inimigos precisam conversar. A avó e a neta exigem proteção e introduzem a possibilidade de vida comunitária. A consequência é direta. O objetivo de Wales deixa de ser apenas revidar e sobreviver, e passa a incorporar a defesa de um pequeno grupo que aposta nele para estabilizar um lugar.
A negociação com o chefe comanche Ten Bears constitui ponto de inflexão claro. Até ali, confrontos com comancheros e emboscadas sugerem que o ciclo de violência é infinito. A conversa, construída com pausas e frases diretas, muda informação e ritmo. O filme usa a encenação para registrar dois homens que testam a palavra do outro. O enquadramento em planos que evitam corte rápido confirma que cada frase tem peso e que o acordo, se acontecer, deslocará o conflito principal de um cerco militar para uma trégua territorial. Dramaticamente, esse pacto abre a possibilidade de uma comunidade mista, e por isso altera o sentido do caminho do protagonista. A partir daí, manter a palavra dada passa a ser objetivo adicional.
Os diálogos ajudam a traçar a progressão do personagem. No início, Wales fala pouco e cospe o tabaco como reflexo de dureza. À medida que o grupo cresce, ele responde a perguntas práticas sobre como plantar, como erguer uma cerca, como dividir tarefas. Essas falas introduzem informação narrativa, porque apontam para um desfecho que não depende apenas de matar o inimigo, mas de sustentar a casa que começa a existir. Quando alguém pergunta se a paz com os comanches vai durar, ele mede as palavras e admite que durará enquanto todos preferirem cumprir o prometido. Essa fala, em cena, dá o subtexto do filme sem recorrer a slogans. A paz é contrato mantido por escolhas diárias, e não por discursos.
A montagem recorre a elipses para acelerar viagens e reduzir combates a consequências claras. Um corte mostra a formação de uma tocaia, o disparo e o resultado. O efeito é narrativo, não pirotécnico. As elipses reforçam que cada confronto abre ou fecha portas para o próximo movimento. Quando o grupo chega a uma terra possível, o ritmo desacelera e a mise-en-scène privilegia distâncias maiores, com a casa aparecendo ao fundo e personagens distribuídos em planos distintos. Isso muda o foco de caçada para responsabilidade coletiva. A música, utilizada com parcimônia, entra em momentos de suspensão e ajuda a marcar passagem de um estado de alerta para uma trégua vigiada, sem impor grandiloquência.
O antagonismo tem dois rostos. Há o capitão que lidera os carrascos da rendição e há o sistema que premia pistoleiros contratados. O primeiro oferece objetivo concreto de vingança. O segundo sustenta a perseguição contínua. Essa dupla camada mantém o conflito ativo. Sempre que Wales elimina um perseguidor, outro aparece motivado por recompensa. Assim, o roteiro preserva a coerência interna. Nenhuma vitória local apaga o preço da fama indesejada. O nome do protagonista vira lenda, e a lenda atrai problemas. Essa causalidade impede soluções fáceis.
Fletcher sustenta a tensão ética do terceiro ato. Ele precisa apresentar um resultado aos superiores e sabe que o massacre da rendição contaminou os termos do acordo. Ao reencontrar Wales, ele testa se ainda é possível uma saída menos sangrenta. A cena final entre os dois é resolvida por reconhecimento mútuo. Fletcher aceita um desfecho administrativo que retira o alvo das costas do antigo adversário. Essa escolha tem efeito em cadeia. Primeiro, permite que o grupo recém formado pare de fugir. Segundo, redefine o protagonista. Ele passa de vingador solitário a guardião de um espaço com regras combinadas.
O clímax com o capitão responsável pelo massacre funciona como ajuste de contas necessário ao arco pessoal. O confronto não ocorre por acaso. É produzido por rastros deixados ao longo da travessia, por informantes, por recompensas oferecidas, e pela insistência do próprio antagonista em provar que a execução da rendição não teria consequências para ele. Quando Wales o elimina, encerra o objetivo inicial que o colocou na estrada. Mas o filme não termina ali, porque o drama principal já havia migrado para a manutenção da comunidade e para a decisão de interromper a espiral que começou no quintal incendiado.
As atuações sustentam a mudança de eixo. Clint Eastwood faz escolhas econômicas que alteram o sentido de cada cena. No início, olhar fixo e fala curta sinalizam prioridade exclusiva à retaliação. Quando a avó e a neta entram, pequenas variações de humor e uma atenção às necessidades práticas abrem outra camada de responsabilidade. Chief Dan George, como o ancião que acompanha Wales, transforma informação sobre passado indígena em ponte para acordos no presente. Ele corrige o protagonista quando este tenta resolver tudo com o revólver, e a correção produz consequência narrativa imediata. Sem essa voz, a conversa com Ten Bears provavelmente terminaria em novo duelo.
A direção usa pontos de vista para organizar a informação. Em diversas cenas, um posicionamento lateral revela o risco antes do personagem perceber, e a antecipação cria tensão causal. O espectador sabe que um grupo armado se esconde no barranco e entende por que Wales tira o cavalo da trilha principal. Em outras, o enquadramento fecha a expressão do antagonista, e essa compressão sinaliza que um ataque está prestes a acontecer. Não é ornamentação, é clareza do jogo dramático.
A estrutura fica nítida. Apresentação em trauma e recusa à rendição. Desenvolvimento em estrada com perseguições, salvamentos e coleta gradual de aliados. Escalada de tensão com a formação do lar e a notícia de que o inimigo se aproxima. Resolução dupla, uma política, via reconhecimento de Fletcher, outra pessoal, via acerto de contas com o capitão. O desfecho não encerra tudo em celebração, porque a própria história ensinou que qualquer paz depende de vigilância. A consequência final é um homem que decide ficar onde está, cercado por gente que agora depende de escolhas pensadas, e não de impulsos.
Se há facilidades, elas aparecem quando a rota dos perseguidores coincide com a do grupo sem explicação logística detalhada. Ainda assim, o filme as compensa ao amarrar as sequências-chave por informação concreta, como rastros, recompensas e boatos de saloon. A coerência temporal se mantém graças às elipses e ao avanço geográfico convincente. O que move a obra não é a troca de tiros pelo espetáculo, e sim a cadeia de decisões. Um ataque gera uma recusa. A recusa gera uma perseguição. A perseguição força alianças. As alianças impõem responsabilidade. Responsabilidade exige negociação. A negociação viabiliza um lugar. E um lugar exige abandonar a posição de puro revide para sustentar regras que outros também possam cumprir. É nessa lógica que “Josey Wales, o Fora da Lei” se afirma como narrativa de causa e efeito, em que cada gesto cobra preço e cada escolha refaz o significado do próximo passo.
★★★★★★★★★★