“Infiltrado na Klan” apresenta um ponto de partida direto e eficiente. Ron Stallworth, recém-chegado ao departamento de polícia, encontra um anúncio da Ku Klux Klan e decide telefonar. Ao adotar a retórica racista para ganhar confiança, ele abre a porta para uma operação de longo fôlego. O roteiro define a divisão de tarefas que sustentará a história. Ron fornece a voz, controla informações, negocia horários e contrassenhas; Flip Zimmerman assume a presença corporal nas reuniões, enfrenta perguntas invasivas, observa a rotina do grupo e administra imprevistos. Essa engenharia narrativa orienta os conflitos de cena, reduz o espaço para digressões e fixa um eixo claro: cada ligação e cada encontro precisam empurrar a investigação adiante sem comprometer a cobertura dos agentes.
A relação entre os dois policiais organiza o arco dramático central. Ron quer provar competência, quebrar barreiras internas e desarmar um risco imediato. Flip, judeu, mede a própria segurança a cada passo, já que o antissemitismo aparece como princípio do grupo investigado. O filme registra o avanço da confiança de forma gradual, sem atalhos. São decisões sob pressão, pequenas vitórias, erros corrigidos em tempo reduzido. Quando Flip precisa improvisar para escapar de um teste de lealdade, a cena alonga olhares e pausas curtas, mas o centro continua no que está em jogo para a operação. O foco recai sobre o que os personagens querem e o que podem perder se falharem.
Patrice, líder estudantil, oferece a leitura externa do caso e tensiona a estratégia institucional. Sua participação impede que a narrativa se feche na lógica de delegacia. Patrice coleciona provas de violência policial contra estudantes, cobra posicionamento de Ron e questiona se combater a Klan por dentro da estrutura estatal produz resultados duradouros. O casal discute, se aproxima e se afasta com base em fatos. O roteiro confronta a aposta de Ron com a crítica de Patrice e pede do espectador uma avaliação de custo e benefício. Não há lições prontas, há consequências. A cada passo, o filme testa o que a investigação alcança e o que ela deixa intacto.
A Klan é mostrada em duas camadas complementares. Em uma, homens inseguros buscam reconhecimento em cerimônias e repetem bordões raciais. Em outra, pessoas com acesso a armas e a redes de apoio planejam atentados. O humor existe, mas tem função operacional: baixar a guarda do público, naturalizar o absurdo e, depois, lembrar que por trás do riso há explosivos e vítimas em potencial. Essa alternância sustenta o comentário político e mantém a linha do suspense. A cada encontro social, a possibilidade de violência cresce. A narrativa mede essa escalada sem efeitos autossuficientes. O próximo passo da trama sempre deriva de escolhas rastreáveis dos personagens.
David Duke entra como figura pública com olhar estratégico sobre comunicação. A interpretação aposta em cordialidade estudada, telefonemas corteses, dados estatísticos e frases polidas. O contraste entre a forma educada e o conteúdo do programa supremacista revela a ambição de respeitabilidade que atravessa a organização. O roteiro explora telefonemas entre Duke e Ron para produzir ironia dramática e para destacar a distância entre a imagem vendida para fora e o que ocorre nas reuniões locais. Essa construção ganha tração no clímax, quando a proximidade forçada expõe limites e riscos, e a operação precisa ser concluída sem margem para erro.
A estrutura do caso é clara. Há uma investigação inicial, uma infiltração com tarefas definidas, um plano de atentado em elaboração e uma corrida para neutralizar o ataque. O filme cumpre a cartilha do thriller policial com controle do tempo e do espaço. As cenas de informação trabalham com objetivos concretos, os diálogos giram em torno de verificação de antecedentes, checagens de nomes, trocas de senhas. Quando a trama avança para a fase mais perigosa, a montagem encurta as transições e concentra a ação em deslocamentos calculados. O suspense nasce da logística, de quem sabe o que, de quando cada personagem percebe um detalhe e do atraso entre percepção e reação.
A direção usa elementos técnicos de modo funcional ao relato. A fotografia diferencia ambientes sem chamar atenção para si. As reuniões da Klan recebem luz quente e estática, criando imagem de confraria que acolhe preconceitos como regra de convivência. Na rua, a câmera acompanha abordagens policiais com objetividade, registrando gestos e consequências. O desenho de som marca telefonemas e portas que se abrem em momentos de risco, mas evita ornamento. A música de Terence Blanchard dá unidade emocional a viradas de investigação e a perdas, pontuando a narrativa sem competir com o que os personagens fazem.
Um dos momentos mais fortes cruza duas linhas de ação. Enquanto a Klan exibe “O Nascimento de uma Nação”, um veterano do movimento dos direitos civis relata um linchamento. A montagem alterna a sala que aplaude e o depoimento que detalha o crime. A sequência não busca efeito isolado. Ela conecta imagem, propaganda e prática. Ao colocar entretenimento racista e violência real no mesmo grau de atenção, o filme transforma cinema em documento sobre a formação de uma cultura. A conclusão não depende de adjetivos; o encadeamento de planos demonstra como histórias com heróis brancos e demônios negros sustentaram ideias que seguem vivas.
As atuações servem à coerência dos arcos. John David Washington compõe Ron como profissional atento, com humor econômico e foco em resultados. Adam Driver registra a mudança de Flip com gestos contidos, do ceticismo ao compromisso, sem discursos de conversão. Laura Harrier mantém Patrice firme na defesa da comunidade, e cada conversa com Ron volta ao ponto central: o que muda de fato quando a polícia atua, o que permanece igual no dia seguinte. Topher Grace entrega um Duke calculista, sempre pronto para a câmera, sempre seguro do produto que vende. O conjunto reforça o desenho do roteiro, que depende de credibilidade em cada interação.
O filme lida também com a cultura interna da polícia. Um agente abertamente racista ganha tempo de tela suficiente para apontar problemas estruturais do departamento. A investigação não promete reforma ampla. Ela delimita um objetivo, neutraliza uma ameaça e revela a conivência de setores do Estado com a ideologia combatida. Essa abordagem interessa ao enredo porque recoloca Ron diante de escolhas difíceis a todo momento. Ele precisa decidir com quem conta, até onde arrisca e como protege a própria vida e a de colegas. A operação, assim, funciona como radiografia de um ambiente que aceita preconceitos e pune quem tenta questioná-los.
O desfecho entrega a resolução do caso e amplia o alcance do relato. O plano de explosão é frustrado, os envolvidos sofrem retaliações e o departamento colhe um resultado imediato. Em seguida, a montagem conecta os anos 1970 a imagens recentes, lembrando que a matriz de violência não desapareceu. A decisão final tem caráter de comentário, mas se ancora no que o filme construiu desde o início: palavras incentivam ações, símbolos organizam grupos, e a distância entre fala e ferimento é curta. A narrativa fecha o arco policial e, ao mesmo tempo, sinaliza permanências que escapam ao trabalho de uma única equipe.
Em diálogo com a obra de Spike Lee, “Infiltrado na Klan” conversa com “Faça a Coisa Certa” e “Malcolm X” pelo interesse em personagens que decidem sob pressão e pela atenção ao contexto social de cada gesto. O humor existe para manter a plateia alerta, não para diluir o assunto. A forma segue a função: cada plano, cada corte e cada tema musical cumprem papel definido na comunicação da história. Não há floreio gratuito. O filme mostra como um improviso bem cronometrado sustenta uma farsa convincente e como a mesma farsa pode terminar em morte se não for interrompida a tempo.
O resultado é um thriller de investigação com propósito claro. A história avança por objetivos verificáveis, personagens agem de acordo com interesses mensuráveis, e a exposição política decorre de decisões concretas. “Infiltrado na Klan” transforma uma operação policial em estudo sobre linguagem de ódio, redes de proteção e ambição de respeitabilidade. O caso se encerra, a estrutura social que o permitiu permanece. Essa constatação não aparece como slogan. Ela nasce do encadeamento de fatos. E é por isso que o filme, mais de quarenta anos após os acontecimentos, continua a falar do presente com precisão.
★★★★★★★★★★