O filme de Martin Scorsese inspirado em ‘O Processo’, de Kafka, e que está na HBO Max

O filme de Martin Scorsese inspirado em ‘O Processo’, de Kafka, e que está na HBO Max

Era 1985 e Martin Scorsese tinha 42 anos de idade. Seus clássicos, como “Mean Streets”, “Taxi Driver”, “Touro Indomável” e “O Rei da Comédia”, já haviam sido lançados. Então, pode-se imaginar que o cineasta já era um ícone do cinema contemporâneo. “After Hours” surge como um pesadelo kafkiano com influências noir e expressionistas, trazendo uma atmosfera obscura e tragicômica para aquele ano no cinema. Estrelado por Griffin Dunne, à época com apenas 29 anos de idade, o longa-metragem desafiaria o espectador com técnicas bastante utilizadas hoje e vanguardistas para a época. Se “Joias Brutas” divide opiniões por seu ritmo frenético, diálogos estridentes e câmeras tremidas na mão do operador, “After Hours” já trazia isso décadas antes de se tornar um estilo inspirador de transportar o espectador direto para a angústia do protagonista.

Reza a lenda que foram 40 dias de filmagens. Durante esse tempo, Scorsese pediu para que Dunne dormisse o mínimo possível e ficasse em abstinência sexual. O mau-humor, a paranoia e a irritação seriam imprescindíveis na construção do protagonista Paul Hackett, inserido em uma espiral de mal-entendidos e situações constrangedoras e perigosas. Com roteiro de Joseph Minion, que virou até tema de TCC em faculdades de cinema pelo mundo, a história se inspira primordialmente na escrita de Kafka. Embora tenha elementos de “A Metamorfose”, é em “O Processo” que “After Hours” encontra nutrientes para construir sua narrativa.

Todo o filme se passa no decorrer de uma noite, em que Paul, um trabalhador comum de escritório, se vê em uma sequência desastrosa de ironias e coincidências absurdas, dignas de um filme escrito e dirigido pelos irmãos Coen. O enredo começa com ele conhecendo uma bela desconhecida em um café, chamada Marcy. Ambos discutem um livro de Henry Miller, e Marcy comenta sobre uma amiga artista que mora no Soho e vende pesos de papel. Pergunta a Paul se ele tem interesse no artesanato e passa o telefone da amiga que a hospeda.

Com o objetivo de reencontrar Marcy e engatar, quem sabe, um romance, Paul pega um táxi até o Soho, mas acaba perdendo todo o seu dinheiro, que voa pela janela. No apartamento, ele conhece a amiga de Marcy, Kiki, uma artista excêntrica com obras bizarras. Após alguns diálogos estranhos, Kiki adormece nos braços de Paul. Nesse momento, Marcy chega ao apartamento e flagra a situação. Ela fica desconfiada de que Paul tenha drogado sua amiga ou feito algo obscuro. Mais alguns diálogos esquisitos acontecem (marca registrada desse filme) e Paul sente uma desconexão com Marcy, acabando por fugir do apartamento.

Sem dinheiro, ele tenta pular a catraca do metrô, mas é expulso pelo segurança. Sem conseguir retornar à sua casa, volta ao apartamento de Kiki. Na entrada, vê dois bandidos em uma van levando uma de suas obras de arte. Ele a recupera e leva até a amiga de Marcy, para descobrir que havia cometido um engano e que a obra havia sido vendida, na realidade. Quando retorna ao quarto de Marcy, encontra-a sem vida, deitada na cama. Não é possível determinar a causa da morte, mas, a partir desse acontecimento, a noite de Paul começa a descambar de vez.

Principal suspeito pela morte da jovem, ele passa a vagar pelas ruas do Soho, perseguido pela vizinhança e envolvido em situações cada vez mais catastróficas. As câmeras acompanham suas fugas desengonçadas como se Paul estivesse preso em um labirinto sem saída, perseguido e mergulhado no caos. Cada vez que tenta se explicar para uma nova pessoa, acaba mais afundado em desentendidos. A cada minuto que passa, a noite de Paul se torna mais angustiante. O enredo de Minion empresta de Kafka o personagem comum tragado pelo absurdo, preso em uma situação impossível de explicar e que o aprisiona.

Assim como em “O Processo”, em que Josef K. é acusado sem saber o motivo, Paul se vê perseguido por um crime que não cometeu. Ele é um suspeito sem jamais ter feito nada. Se, na obra de Kafka, a sociedade é um organismo opressor, no filme de Scorsese o bairro inteiro se volta contra Paul e tenta linchá-lo, mesmo sem provas para acusá-lo. Além disso, o destino sempre cuida de dificultar a vida do protagonista. A burocracia dos horários, passagens e motoristas nunca parece favorecê-lo, cooperando para sua desgraça.

Para inflar as sensações nos espectadores, Scorsese usa artimanhas de luz e sombra, jogos de câmera, travellings rápidos e uma trilha sonora que amplia a lógica de que Paul está sendo esmagado, preso em um labirinto. Luzes duras, sombras que deformam, interiores escuros inspirados no expressionismo alemão, cortes abruptos, plongées e closes nas expressões de desespero do protagonista dão a sensação ainda maior de perigo, urgência e hostilidade.

Embora tenha uma estética oitentista, diferente de outras obras de Scorsese que são impossíveis de se determinar idade, “After Hours” é um resgate precioso de sua carreira e nos lembra que sua grandeza tem embasamento em currículo.

Filme: After Hours
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 1985
Gênero: Comédia/Crime/Mistério/Psicológico/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.