Inspirado em Freud e baseado em livro de Stephen King, o terror psicológico mais intrigante do cinema recente chegou à Netflix Divulgação / Warner Bros.

Inspirado em Freud e baseado em livro de Stephen King, o terror psicológico mais intrigante do cinema recente chegou à Netflix

O casamento de Stephen King com o cinema talvez seja o caso de amor mais prolífico da história da cultura pop. O interesse do público pelas histórias de suspense e terror psicológico do mais famoso autor da (comercialíssima) literatura dos séculos 20 e 21 nunca esfria, como se pode verificar no palhaço metafísico de “It – A Coisa” (2017), dirigido por Andy Muschietti; na enfermeira diabólica de “Louca Obsessão” (1990), sob o comando de Rob Reiner; ou no são-bernardo raivoso de “Cujo” (1983), rodado por Lewis Teague, filmes que arrastaram cada um centenas de milhões de pessoas às salas de exibição do mundo inteiro. Mike Flanagan, outro dos vários discípulos kinguianos na tela grande, assume um imenso risco com “Doutor Sono”, que volta quarenta anos e chega ao célebre “O Iluminado” (1980), a melhor adaptação de um trabalho do escritor, muito melhor do que o próprio livro — como sói acontecer com as publicações de King. Baseado no romance homônimo de 2013, existem no roteiro de Flanagan manifestas referências ao universo de Stanley Kubrick (1928-1999), mas “Doutor Sono”, a pretensa continuação de “O Iluminado”, só o que consegue é fazer o espectador ter vontade de ver o primeiro longa novamente.

No prólogo, vê-se um garoto andando de velocípede por um assoalho de madeira todo forrado de tapetes, numa boa reconstituição das cenas em que Danny Torrance, o filho de Jack Torrance, tentava se distrair no Overlook, o hotel nas cercanias das montanhas Rochosas, no Colorado, enquanto o pai trabalha como zelador e finge escrever um livro, dando vazão a seus instintos bestiais. Os traumas de Danny durante sua permanência no Overlook seguem com ele, constituindo uma parte substancial do filme, mas nem tudo. O personagem cresceu e não está sabendo enfrentar muitos dos busílis da vida adulta, a começar pela dependência em álcool, efeito dos horrores da primeira infância junto ao pai louco. Danny erra pelos Estados Unidos, chega a New Hampshire, consegue alugar um quarto por intermédio de Billy, um ex-alcoólatra que puxa conversa com ele, e torna-se cuidador no asilo da cidade. Pano longo.

Flanagan passa às explicações semânticas de seu filme, colocando Danny como um anjo exterminador que visita os moribundos na hora inadiável. Ele é o tal Doutor Sono do título, e acompanhado de Azrael, uma gata branca e dócil que sobe na cama daqueles que estão prestes a dormir para sempre, e o protagonista ganha algum espaço no decorrer das duas horas e meia. Ewan McGregor faz de Danny uma figura humana verossímil, sublinhando a vulnerabilidade desse sujeito invulgar que sofre a influência de forças sobrenaturais e é incapaz de vencer um trauma tão mundano. Contudo, os personagens secundários merecem uma análise cautelosa, tamanha a perturbação que inspiram. Rose the Hat, a líder do Nó Verdadeiro, um grupo de paranormais que aumentam sua estada neste plano nutrindo-se do derradeiro sopro vital de crianças iluminadas, lembra Alexander DeLarge, o delinquente lunático vivido por Malcolm MacDowell em “Laranja Mecânica” (1962), o clássico da ficção distópica assinado por Anthony Burgess (1917-1993) e celebrizado por Kubrick. Da mesma forma que Flanagan privilegia a forma sobre o conteúdo, a presença de Rebecca Ferguson sobrepõe-se a McGregor, e “Doutor Sono”, que queria ser King e Kubrick, não é nenhum dos dois.

Filme: Doutor Sono
Diretor: Mike Flanagan
Ano: 2019
Gênero: Fantasia/Terror
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.