O último grande filme de Clint Eastwood acaba de chegar à Netflix Divulgação / Warner Bros.

O último grande filme de Clint Eastwood acaba de chegar à Netflix

Pode-se esperar tudo de Clint Eastwood. Alma do faroeste e do próprio cinema americano por excelência, Eastwood coloca no bolso mocinhos, vilões e todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do espectador abaixo, sem que este nem consiga pigarrear. Em “A Mula”, ele mais uma vez sobrepõe as funções de diretor e protagonista com a elegância e o vigor técnico costumeiros, assustando alguns com sua característica disposição para o trabalho. Sensível a roteiros que fogem ao comum, Eastwood extrai do texto de Nick Schenk, baseado num artigo do jornalista Sam Dolnick para a “New York Times Magazine”, um conto revelador sobre velhice, solidão, vulnerabilidade social e morte, ao longo do qual reflete acerca de assuntos espinhosos como xenofobia, racismo, políticas antidrogas e o populismo rasteiro das autoridades, empenhadas em dar soluções fáceis e equivocadas para um problema complexo.

Earl Stone é um homem singular. Earl, um produtor de flores de Illinois, vive da melhor forma que consegue, mas aos poucos Eastwood deixa claro que qualquer coisa de nebuloso ronda sua história. Apesar dos flertes ingênuos com as senhoras que frequentam as exposições de arranjos florais por onde ele passa, Earl tem sentido o peso de haver negligenciado a família em nome do trabalho — mas também da independência da vida na estrada —, e talvez seja tarde demais para refazer essa trilha. Um flashback mostra o protagonista num momento mais favorável, muito diferente de agora, quando está prestes a entregar sua fazenda para o banco, sem a menor perspectiva de um milagre no horizonte. Treze anos depois, ele está no casamento de Ginny, a neta interpretada por Taissa Farmiga; um homem entrega-lhe um número de telefone, dizendo que ele poderia ganhar uma bolada dirigindo. É bom demais para ser verdade. Antes, uma sequência com Eastwood e Dianne Wiest, na pele de Mary, a ex-mulher de Earl, garante uma dose a mais de sentimento, preparando o enredo para um outro ritmo.

Earl passa a atravessar o Centro-Oeste dos Estados Unidos, indo até El Paso, Texas, na fronteira com o México, hospedando-se em motéis baratos na companhia de prostitutas com quem divide sanduíches de carne de porco, até que finalmente cede à intuição e decide remexer na carroceria da caminhonete. A grande barriga em “A Mula” é o octogenário Earl, tão safo que voltou ileso da Guerra da Coreia (1950-1953), levar uma carga sem saber seu conteúdo, mas quem se importa? Eastwood mantém a boa desenvoltura diante do núcleo dos agentes da DEA chefiados pelo Warren Lewis de Laurence Fishburne, destacando-se ainda mais com a entrada em cena de Colin Bates, o detetive responsável por mapear o fluxo de traficantes na região de Chicago. Bradley Cooper reedita a parceria exitosa verificada em “Sniper Americano” (2014), embora Eastwood sempre disponha de uma carta na manga e continue no centro do palco. Earl Stone refere-se a negros e hispânicos em termos antiquados e politicamente incorretos, achando-se melhor que eles. Meio sem querer, Clint Eastwood, um dos melhores contadores de histórias que Hollywood já produziu,levantaum debate pateticamente atual em tempos de um populismo escancarado e hipócrita acima do rio Grande.

Filme: A Mula
Diretor: Clint Eastwood
Ano: 2018
Gênero: Crime/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.