Choque filosófico: filme da Netflix mergulha no niilismo de Nietzsche e arrasta o espectador para dentro da história Divulgação / Anchor Bay Films

Choque filosófico: filme da Netflix mergulha no niilismo de Nietzsche e arrasta o espectador para dentro da história

Refilmagem de um título polêmico dos anos 1970, o longa acompanha uma escritora que se afasta para escrever e vê o cotidiano colapsar diante de um ataque que divide a narrativa em dois blocos, agressão e contra-ataque. Sem lições morais, o roteiro trabalha com causa e efeito, observação de gestos e sequência de decisões que conduzem a passagem da vulnerabilidade ao planejamento.

Jennifer viaja para uma cabana isolada em busca de tempo de trabalho. O prólogo fixa rotina, pequenos gestos e silêncio, marcando a personagem no espaço e preparando a chegada dos homens que a observam, testam limites e tomam o controle. A ameaça é explícita. Os diálogos iniciais definem a hierarquia entre os agressores: um líder confiante, dois comparsas competitivos e um integrante frágil, dependente de aprovação. A entrada do xerife, ainda antes do ato central, expande o alcance do perigo ao evidenciar a falha de quem deveria interromper a escalada. A narrativa organiza o percurso com clareza: cerco, crime, queda simbólica ao rio e desaparecimento temporário da protagonista.

O desenho dos arcos é direto. Jennifer começa como uma profissional comum, sem traços heroicos. Essa simplicidade potencializa o impacto do ataque e sustenta a virada. Quando retorna, atua com objetivos definidos: identificar cada agressor, isolá-lo, explorar fraquezas e aplicar punições que dialogam com a covardia presenciada. A transformação não recebe explicações psicológicas extensas; não há terapia, confissões ou monólogos. Há planejamento e ação. A economia de motivos favorece a coerência e mantém o foco na cadeia de decisões, sempre reativa ao que aconteceu.

Os antagonistas são caracterizados por gestos e dinâmica de grupo. O líder mascara camaradagem para conduzir a humilhação; o braço direito cobre insegurança com crueldade; o mais jovem hesita e busca aliviar culpa com frases curtas; o xerife alterna cordialidade pública e sadismo privado, síntese de um poder que deveria proteger e escolhe violentar. A composição evita complexidade aparente, mas entrega material suficiente para sustentar a lógica de retribuição da segunda metade. O filme não busca redenção. Registra a violência como rotina: risadas fora de hora, tentativas de diminuir a vítima, negociação interna de responsabilidades.

A estrutura dramática opera em simetria. O primeiro ato alonga o tempo e produz sensação de continuidade do sofrimento; a segunda parte acelera, elimina excesso e mira alvos definidos. O contraste reforça a organização por espelhamento: impotência, depois controle. Cada encontro de Jennifer com um agressor se conecta a um traço específico — medo, arrogância, lealdade servil —, e a encenação converte o que foi arma de humilhação em instrumento de queda. A repetição dessa lógica pode soar mecânica, mas garante consistência: a regra central é causa e efeito.

Os diálogos servem como índice de caráter. Na primeira metade, os homens expõem autoindulgência e justificativas toscas, sempre desviando responsabilidade. Na segunda, o silêncio pesa mais, interrompido por súplicas desconexas, sem acolhida. Jennifer quase não comenta seus atos; a obra privilegia ação. A escolha preserva o andamento dramático e concentra atenção na sucessão de cenas, na montagem de cada armadilha e na precisão dos desfechos.

A direção de Steven R. Monroe estrutura o espaço como agente dramático. Cabana, mata, rio e estradas vicinais compõem um tabuleiro de deslocamentos previsíveis, facilitando tensões pontuais, perseguições curtas e emboscadas. A fotografia pende a tons frios e contrapõe luz natural do exterior a interiores claustrofóbicos quando a trama exige confinamento e risco. O enquadramento enfatiza o corpo: primeiro no registro do abuso, depois na materialidade das punições. A insistência pode causar repulsa, mas cumpre função narrativa ao traduzir o que está em disputa.

A montagem articula as duas fases. O prolongamento da violência no início reforça a perda de controle de Jennifer; os cortes secos do segundo segmento registram eficiência. Quando a protagonista prepara um confronto, a sequência valoriza gesto preparatório, olhar atento e espera calculada. A execução vem sem discurso. A cadência entre preparação e ação estabelece ritmo e evita redundância explicativa. O espectador compreende cada passo porque a encenação mostra o necessário, dentro dos limites da história.

A presença do xerife tem impacto na leitura cultural do filme. Ao participar do crime e depois manter aparência de ordem, ele simboliza a quebra de confiança social. O enredo extrai daí um motor ético claro: quem deveria interromper o abuso o amplia. Quando a vingança alcança essa figura, a narrativa fecha a crítica a instituições falhas sem manifestos, apenas pela trajetória dramática. Esse componente diferencia “Doce Vingança” de outros títulos do subgênero centrados em marginais: aqui há um detentor de autoridade, e o dano ganha outra escala.

A comparação com “Cuspirei em seus Túmulos” é inevitável. O filme de 2010 preserva a espinha dorsal do original e atualiza a gramática visual para um público habituado a imagens mais explícitas. Ao contrário de obras que apostam em estilização ou humor negro, como “Kill Bill: Volume 1”, a refilmagem prefere secura. Já “Aniversário Macabro” distribui culpa e perdão entre pais e filha, enquanto aqui tudo se concentra em uma agente. “Menina Má.com” opta por duelo verbal e manipulação psicológica; “Doce Vingança” investe em ação direta e correspondência entre ofensa e resposta.

As atuações seguem o projeto do roteiro. Sarah Butler inicia com gestos contidos e evolui para presença controlada na vingança. A entrega física sustenta a credibilidade das ações e evita distrações de virtuosismo. O elenco masculino reafirma perfis definidos, sem buscar nuances que diluam o desenho da narrativa. O eixo permanece na trajetória de Jennifer e na desmontagem gradual do grupo.

Há escolhas passíveis de debate. A ênfase prolongada na violência inicial pode afastar parte do público por parecer gratuita. Em termos de estrutura, porém, a insistência dá peso à virada: a segunda metade se ancora na memória do horror previamente registrado. As punições seguem padrão que, por vezes, flerta com a repetição, mas a conclusão de cada confronto confirma a simetria proposta, e os arcos se encerram sem atalhos redentores.

O impacto cultural decorre menos de polêmica pontual e mais de decisões que mantêm a história no essencial. A protagonista planeja, ataca e conclui; os agressores caem um a um; a autoridade cúmplice é exposta. Não há tribunais, confissões catárticas ou conversões morais. Há uma cadeia de eventos que parte de um crime e termina em contabilidade brutal, com consequências delimitadas. A clareza dessa linha, somada ao uso funcional de imagem e som, coloca “Doce Vingança” em posição específica dentro do cinema de vingança: menos estilizado, mais seco.

No balanço, “Doce Vingança” oferece narrativa coesa que organiza espaço, tempo e ação com finalidade dramática nítida. O filme evita discursos explicativos, confia no encadeamento de decisões e na força dos eventos. Ao privilegiar progressão do enredo e lógica de retribuição, constrói experiência incômoda, porém precisa. A observação passo a passo confirma que a história se sustenta na estrutura binária — agressão e resposta — e que os elementos técnicos operam a favor desse desenho. O resultado é duro, direto e coerente com a proposta estabelecida desde o início.

Filme: Doce Vingança
Diretor: Steven R. Monroe
Ano: 2010
Gênero: horror/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★