A diretora foi ameaçada, mas seu filme se tornou um dos mais poderosos do Prime Video (sob demanda) Divulgação / Bleecker Street Media

A diretora foi ameaçada, mas seu filme se tornou um dos mais poderosos do Prime Video (sob demanda)

Responsável por filmes que arrecadaram bilheterias milionárias e que receberam dezenas de indicações ao Oscar, Harvey Weinstein era também um predador sexual em série cujos abusos já faziam parte da folha de pagamentos da Miramax. As vítimas de Weinstein eram coagidas a assinar acordos de confidencialidade e a aceitar dinheiro para manter o caso longe do escrutínio da imprensa, escândalo que chegou ao conhecimento do público graças a Jodi Kantor e Megan Twohey, duas jornalistas do “New York Times”. O histórico de excessos criminosos de um dos homens mais influentes da indústria cinematográfica virou a matéria-prima de Maria Schrader em “Ela Disse” (2022), baseado no livro-reportagem homônimo publicado por Kantor e Twohey em 2019, e naquele mesmo ano a australiana Kitty Green levou às salas de exibição “A Assistente”, seu primeiro trabalho ficcional. As referências à Miramax e a Weinstein são tão óbvias que renderam a Green acusações de plágio e, naturalmente, as ameaças de cerceamento que Schrader também recebeu, mas ela não intimidou-se com o duplo tiroteio. Ao longo de um dia extenuante, a diretora acompanha uma jovem aspirante a produtora de cinema lidando com um chefe abusivo e truculento, uma figura tão sombria que sequer se faz ver, mas que está presente, mediante ligações, resmungos, desaforos, broncas em voz metálica. E o velhíssimo hábito de trancar-se com mulheres bonitas em seu escritório após o expediente.

Jane passara o fim de semana na produtora, organizando documentos e dando telefonemas para uma reunião importante na segunda-feira. Ela foi admitida há apenas cinco semanas,depois de um processo seletivo rigoroso e disputado, e já habituou-se à rotina tediosa de reservar passagens de avião, imprimir balanços fiscais, receber convidados e limpar a sujeira. Sua válvula de escape é passar os olhos pelas páginas dos roteiros que vão chegando, prestando atenção para que ninguém repare. Ela dá expediente numa sala pequena com outros dois funcionários homens, que parecem ter aprendido a ignorar os arroubos de fúria do superior, embora eles talvez nunca tenham sido vítimas de toda a violência do chefão, acolhidos pela irmandade do gênero. Entre uma e outra tarefa nada glamorosa — e chamadas da esposa, que decerto sabe dos casos do marido e desconfia que sua nova subalterna o encoberte —, ela recolhe um brinco do chão. Dias mais tarde, Sienna, uma ex-garçonete de vinte e poucos anos vinda de Boise, Idaho, desembarca na empresa. A assistente decide que é hora de tomar uma atitude.

Na cena mais importante do filme, Jane vai falar com Wilcock, o responsável pelos Recursos Humanos, imaginando que vai receber algum bom conselho ou que será aberta uma sindicância para apurar o problema. O que acontece entre os dois é de um constrangimento tão avassalador para Jane que do outro lado da tela também vamos nos encolhendo, sentindo crescer o nó na garganta e a pena pela moça, encurralada, sem saída. Matthew Macfadyen alterna-se do cinismo maldisfarçado ao deboche cruel, e tem-se cada vez mais claro que o sistema foi todo montado sobre uma estrutura corrupta, apodrecida, imoral, a que Jane deve adequar-se ou ir embora. Green faz da produtora uma metáfora sobre o mundo corporativo, particularmente inamistoso às mulheres, de alguma maneira voltando a “Ucrânia Não É um Bordel” (2013) e “Quem é JonBenet” (2017), seus documentários nos quais discorre acerca dos riscos da condição feminina. Muitas sequências se passam no elevador, onde Jane esgueira-se, abaixa o rosto, modera a respiração, abre espaço para que os outros, homens inclusive, saiam antes. Se ainda pairava alguma dúvida quanto ao poder da atuação de Julia Garner no longa, essa resistência acaba nos últimos dez minutos. Garner materializa o sofrimento da personagem valendo-se dos grandes olhos azuis, das mãos crispadas, do andar rápido, do pranto contido. Quem já teve um chefe arrogante, presunçoso, soberbo ou colérico, sabe perfeitamente que essa é uma chance ímpar de se crescer como profissional, e é essa a mentalidade que Jane parece tentar incutir em si mesma. O que não atenua em nada nosso desconforto.

Filme: A Assistente
Diretor: Kitty Green 
Ano: 2019
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.