Há quase noventa anos, uma criatura entre a Terra e o espaço reforça valores como justiça, humildade e benevolência. Não obstante sua cara de homem comum, essa figura enigmática guarda poderes que indivíduo nenhum jamais terá, e por essa razão nunca pôde assistir aos despautérios que acontecem no mundo sem tomar partido. Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992) não sabiam quão popular seria o personagem que criaram em 1938 para a DC Comics, mas uma conjuntura nefasta de incertezas, guerra, privação, fome e morte foi de toda a relevância para consagrar Superman como um dos símbolos da dominação cultural, o soft power dentro da sociedade da pólvora e dos acordos secretos e iníquos por excelência. A versão de James Gunn para a história do kryptoniano adotado por Martha e Jonathan Kent, dois caipiras de Smallville, cidadezinha fictícia do Kansas, parece de alguma maneira querer redimir o super-herói pelos equívocos de seus criadores. O diretor-roteirista confere a seu Superman a aura de guia moral para novos tempos sombrios, o que arrasta uma multidão de fãs, mas também acorda uma miríade de detratores.
Desde o superestimado “Superman” (1978), de Richard Donner (1930-2021), fenômeno de público e bem-acolhido pela crítica, protagonizado por Christopher Reeve (1952-2004), acrescentam-se novas reviravoltas àquilo que se sabe a respeito de Kal-El, a identidade alienígena do Homem de Aço. Gunn recorre a uma avalanche de cenas em computação gráfica, diálogos espirituosos e a invencível crise existencial de Kal-El/Superman/Clark Kent para envolver o público no conflito da hora, revelado sem pressa. Paralelamente, o diretor não se dá por satisfeito enquanto não deixa clara seu objetivo de pintar Superman como um imigrante, alguém que veio de muito, muito longe a fim de a colaborar com a grandeza da América. A despeito de toda a sua popularidade, o meta-humano mais amado do globo amarga uma derrota humilhante, vitaminada pela campanha difamatória de Elon Musk, digo, Lex Luthor, que supervisiona seu gabinete do ódio na sede da LuthorCorp — embora seja real a mensagem de Jor-El e Lara Lor-Van, os pais biológicos de Kal-El, fio condutor da narrativa.
David Corenswet e Nicholas Hoult dividem os melhores momentos deste novo “Superman”, mas o público mais fiel também entusiasma-se com o Senhor Incrível encarnado por Edi Gathegi e o Lanterna Verde de Nathan Fillion, entre sequências em que Clark e Lois Lane, sua eterna namorada, tentam acertar os ponteiros em meio ao caos que cerca o alter ego do jornalista mais discreto do “Planeta Diário”. Durante a melhor delas, Clark já está no apartamento de Lois quando ela chega. Celebram três meses de namoro, e para a ocasião ele resolve preparar um café da manhã servido à noite, que ele diz ser o prato favorito da moça, ao que ela retruca: “Este é o seu prato favorito.” Gunn é hábil em manipular as emoções da plateia, e essa ligeira discussão de relacionamento serve de preâmbulo para uma entrevista em que Lois tira do Superman, cuja verdadeira identidade já conhece, confidências e suas estratégias para defender-se da grave acusação fomentada por Luthor. Rachel Brosnahan equilibra-se bem entre as alegrias e as tristezas de sua mocinha, a verdadeira mártir da trama, especialmente depois que Superman entrega-se e é mandado ao que parece uma prisão de segurança máxima numa dimensão inatingível. Quem dá a notícia é o repórter de TV interpretado por William Reeve, o filho de Christopher Reeve e Dana Reeve (1961-2006), deixando no ar uma ironia: o guardião da esperança da humanidade inventado pela parece DC Comics já ter jogado a toalha, mas a franquia não arrefece. Haja sotf power!
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