Se existe um filme obrigatório para ver na Netflix, é a obra-prima de Todd Phillips que acabou de chegar à plataforma Divulgação / Warner Bros.

Se existe um filme obrigatório para ver na Netflix, é a obra-prima de Todd Phillips que acabou de chegar à plataforma

“Cães de Guerra” estabelece a ascensão com clareza de passos. O ponto de vista é de David, que começa atendendo clientes como massagista e vê a renda encurtar. O reencontro com Efraim oferece uma alternativa concreta, um parceiro que conhece o funcionamento das licitações, sabe onde procurar lotes menores e aceita margens curtas para ganhar terreno. A montagem encadeia telas de computador, telefonemas, planilhas improvisadas e entregas que saem a tempo, de modo que o espectador entende por que a confiança cresce. A narrativa privilegia o efeito de cada ação na próxima, e esse encadeamento sustenta a primeira metade, quando a parceria encontra ritmo e quando a ética ainda parece negociável.

A diferenciação entre os dois protagonistas sustenta o conflito. David busca previsibilidade, mede frases e calcula riscos, Efraim gosta de impor voz e transformar negociação em teste de dominância. Em uma conversa decisiva, David pergunta, “Quanto disso é legal?”, Efraim responde, “Confia, eu cuido do resto”. O diálogo curto não serve apenas como marca de estilo, serve como chave de leitura do contrato entre os dois. A sociedade nasce do desequilíbrio entre necessidade e ambição, e a narrativa deixa esse pacto explícito sempre que Efraim acelera e sempre que David tenta manter a barra dentro da linha formal do edital.

A sequência da entrega por estrada, quando um bloqueio ameaça um envio e a dupla decide dirigir pelo território de risco, confirma que já não há retorno à zona segura. O filme estrutura a cena em etapas, motoristas contratados às pressas, checkpoints tensos, tiros ao longe, um relógio que não para. O enquadramento acompanha o rosto de David e traduz medo crescente, enquanto Efraim reage com riso alto e euforia. A cena tem função direta na progressão, afirma a disposição de atravessar limites e amarra a confiança que permitirá o salto seguinte. Não é uma aventura lateral, é um degrau que define o tipo de história que o filme conta.

O grande contrato muda o patamar e expõe rachaduras. A operação exige fornecedores espalhados e mediadores com interesses opacos. Entra em cena Henry Girard, figura que negocia portas fechadas e cobra por manter portas abertas. O roteiro trata a passagem pela Albânia como nó dramático. O galpão em Tirana enche de caixas com inscrições que entregam a origem indesejada, a solução encontrada consiste em repacotar e pintar para apagar marcas. A decisão resolve o problema logístico e cria um problema legal e moral. Efraim briga por centavos, revê promessas, corta parceiros. David tenta cumprir prazos e começa a mentir em casa. A progressão dramática deriva desse encurtamento de prazos e desse alargamento de riscos, e não de um discurso abstrato sobre ganância.

Os detalhes visuais atuam como provas de narrativa e não como enfeite. Pilhas de caixas, poeira de munição, rótulos cobertos, e-mails formais que pedem “ajuste de embalagem”, tudo funciona como índices que apontam para um ponto de ruptura. Em outra cena curta, Efraim afirma, “Ninguém vai abrir caixa por caixa”, David responde, “Alguém sempre abre”. A troca sintetiza o erro tático do sócio mais agressivo e o instinto de sobrevivência do narrador. A história avança porque esses impasses desembocam em decisões práticas, cortar custos, descumprir acordos, improvisar, e cada improviso deixa rastro documental que voltará mais tarde.

Phillips usa humor como ferramenta de dissecação. As piadas nascem do contraste entre a formalidade do aparato estatal e a informalidade dos intermediários. Reuniões em salas frias rendem frases burocráticas que escondem manobras, apresentações limpas encobrem pressa, planilhas projetadas na tela viram campo de batalha. A trilha pop entra para marcar transições, acelera montagens e ajuda a condensar etapas do negócio. Esses recursos servem ao entendimento do que acontece, não ao exibicionismo. O ritmo rápido reflete a lógica de um mercado que premia velocidade, e o filme conecta esse ritmo à produção de erro, prazos apertados facilitam atalhos, atalhos cobram preço.

Os personagens secundários reforçam a linha de causa e efeito. A namorada de David funciona como termômetro doméstico, cobra transparência, observa sinais, e sua presença complica cada nova mentira. Henry opera como lembrança do risco que não aparece nos relatórios, impõe regras, define margens, promete consequência dura para quem falha. A ausência de vozes locais do país que receberia a munição limita o escopo do retrato, o filme mira os intermediários e mantém o restante como cenário. A escolha preserva a coerência interna da narrativa, que segue focada na dupla, mas reduz o alcance de uma discussão social mais ampla sobre o efeito final desse comércio.

As atuações aderem ao desenho do roteiro. Jonah Hill compõe Efraim com pausas calculadas, risos que intimidam e um olhar que mede fraquezas do outro. A performance não busca traço excêntrico solto, busca impacto em negociações, em contratos que mudam de mão, em amizades abaladas por dinheiro. Miles Teller organiza David como observador que aprende e se desvia, controla a fala, exibe culpa quando as mentiras acumulam, tenta consertar um vazamento enquanto outro abre. Bradley Cooper, em poucas cenas, estabelece um eixo de poder distante, alguém que decide sem levantar a voz e que cobra sem se expor. O trio sustenta a progressão porque cada escolha altera o estado do negócio.

A direção assume pragmatismo visual. Montagens comprimem ciclos de licitação e entrega, deslocamentos se resolvem em imagens claras de aeroportos e depósitos, telas de computador recebem atenção quando ajudam a explicar ganho e perda. Não há virtuosismo gratuito, há uma economia de recursos que mantém o foco em como a história anda. Esse desenho ajuda a entender por que a queda se torna inevitável, a ampliação de escala não corrige falhas internas, só multiplica consequências. O contrato gigante escancara as diferenças entre os sócios, acelera a erosão da confiança e expõe a cadeia de documentos que comprova o crime.

A investigação e o desfecho mantêm a lógica do romance de causa e efeito. E-mails guardados, notas fiscais, trocas de mensagens e testemunhos fecham o cerco. Quando o Estado aparece para cobrar, a narrativa evita versões grandiloquentes e prefere o registro do impacto concreto, casa em silêncio, sociedade desfeita, promessas inexistentes. A sugestão final de acordos laterais e de continuidade do velho sistema aparece como comentário sobre o ambiente e não como desculpa para os protagonistas. O filme não procura um vilão externo de conveniência, aponta para um mecanismo que premia ousadia até o ponto em que a ousadia pisa em regra que deixa marca.

As comparações ajudam a situar a estratégia. Em “O Lobo de Wall Street”, o excesso conduz o relato e cria um espelho deformado para o espectador. Em “A Grande Aposta”, a explicação pedagógica organiza a crítica ao mercado. “Cães de Guerra” escolhe outro caminho, centraliza a trama em dois sócios e traduz mecânicas de licitação em conflitos de corredor. A proximidade com “O Senhor das Armas” aparece na negociação de munição e na presença de atravessadores, mas o recorte aqui é o do pequeno fornecedor que tenta derrubar gigantes com timing e planilha. Essas referências têm função operacional, iluminam como o roteiro decide avançar e onde compromete profundidade histórica.

O resultado oferece um estudo de ambição sustentado por ações verificáveis e por uma progressão que respeita lógica interna. Cada passo que garante faturamento produz dano estrutural na sociedade entre David e Efraim, e o filme transforma essa corrosão em motor dramático. As escolhas de direção, o uso de humor, a composição de performances e a economia de explicações formam um conjunto coeso porque se subordinam a um objetivo simples, demonstrar como a fome de contrato assina a própria sentença quando atravessa uma linha traçada por leis, etiquetas e caixas numeradas.

Filme: Cães de Guerra
Diretor: Todd Phillips
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Crime/Drama/Guerra
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★