A fragilidade das instituições refletem o descompasso entre a democracia e a vida como ela é. A polícia está sempre às voltas com escassez de recursos, o que acaba por comprometer investigações e reduzir sua eficácia. Além disso, a falta de treinamento adequado e contínuo dá margem para abusos, arbitrariedades, violações de direitos humanos básicos e uma truculência que, não raro, leva à morte. Agentes corruptos minam a confiança da população e reforçam o sentimento de impunidade. A justiça, por seu turno, padece de uma lentidão que, paradoxalmente, degringola em iniquidade, e nesse caldeirão refervem ira, ódio, dilemas éticos e sede de vingança, matérias-primas de “A Negociação”. Especialista no gênero, F. Gary Gray reaproveita velhas fórmulas e compõe um thriller coeso, cheio de tensão, som e fúria. Mérito dele e de uma parceria muito bem-azeitada.
Danny Roman é um dos melhores negociadores de crises da polícia de Chicago, como se pode assistir na primeira sequência do filme. Roman tenta convencer um homem descontrolado alibertar a própria filha, feita refém depois que ele assassinou a esposa, e o roteiro, de James DeMonaco e Kevin Fox, vale-se desse gancho para fazer alguns apontamentos sobre a índole vaidosa e personalista do agente, instado a abortar a missão, mas deixando-se levar pelo instinto profissional. Ele finalmente entra no apartamento do agressor, resgata a criança e escapa por pouco do tiro do sniper posicionado no edifício do outro lado da rua, que derruba o criminoso. Roman e os colegas vão comemorar o sucesso da operação num bar próximo,dançandocoreografias de música country, quando são surpreendidos por uma chamada no noticiário local, reportando a façanha do veterano. Aos poucos, Gray revela detalhes que encaminham a história para os lances mais acidentados, e o herói começa sua descida ao inferno.
Um esquema de corrupção sistêmica na polícia, com manipulação de provas, desvios de verbas de um fundo de pensão e um pacto de silêncio que protege os verdadeiros culpados, estoura em cima de Roman, flagrado numa atitude suspeita dentro de um carro numa estrada deserta. Os policiais que realizavam a patrulha entregam a ocorrência à cúpula da corporação, chefiada pelo inspetor Niebaum, que lidera a equipe imbuída de buscar e apreender possíveis evidências na casa de Roman. Incriminado, o negociador, até então o funcionário mais honesto da polícia, contra-ataca invadindo a sala de Niebaum na Divisão de Assuntos Internos, e a trama passa ao teor conspiratório que prenunciava na abertura. Roman vai de pedra à vidraça, e depois de tratar uma rendição com seus ex-parceiros, ele determina que só sairá se Chris Sabian, também perito em situações extremas, fale com ele.
Este é um filme certeiro. Malgrado os clichês, “A Negociação” jamais naufraga na mesmice graças a Samuel L. Jackson e Kevin Spacey. Enquanto Jackson começa leve, priorizando uma face bem-humorada de Roman, e vai equilibrando sobre o personagem muitas camadas de revolta e tristeza, Spacey é mais comedido, embora atinja resultado semelhante. De natureza deontológica, o confronto entre os dois extrapolam o alcance da narrativa e tecem um comentário divertido, porém igualmente mordaz, acerca dos vícios ocultos das autoridades, destacando nas entrelinhas os lugares-comuns encontrados à farta nas produções congêneres. Que realmente ficam apáticas sem talentos como Jackson e Spacey.
★★★★★★★★★★