Os artistas, especialmente os clássicos, parecem seres quase celestiais, cuja conexão com o divino e o etéreo parece tão intricada que duvidamos de sua humanidade corrompida e falha. Mas não é bem assim. Um dos maiores artistas barrocos da história, Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio, guarda uma história de vida violenta e conturbada, marcada pela tragédia e pela marginalidade. Nascido em 29 de setembro de 1571 em local incerto, alguns dizem Milão, outros a cidade de Caravaggio, que lhe deu o nome, o artista cresceu em uma família respeitável e bem-posicionada socialmente.
No entanto, o destino traria novos rumos para sua vida ainda cedo. Aos seis anos, perdeu o pai para a peste. Pouco depois, a mãe e os avós. Órfão, viu sua infância se esvair pelos dedos. Com apenas 12 anos, Caravaggio teve seu primeiro contato com a pintura através de Simone Peterzano, discípulo de Tiziano. Entre tintas e disciplina, aprendeu as técnicas da pintura, mas não o idealismo renascentista. Enquanto mestres buscavam a beleza e o celestial, os olhos de Caravaggio foram atraídos para o outro extremo da vida: os becos, os mendigos, as prostitutas, os jogos de cartas, os trabalhadores de Roma. Dali, dos cantos mais duros da cidade, viriam suas maiores inspirações.
Ainda jovem e sem dinheiro, Caravaggio chegou a Roma em 1592. Para sobreviver, trabalhou em oficinas, produziu naturezas-mortas, atravessou a fome, a miséria e diversas doenças. Seu sucesso só veio quando foi acolhido pelo cardeal Francesco del Monte, que o apresentou às grandes encomendas religiosas. No entanto, sua arte sempre se distanciou da tradição maneirista e renascentista. Em suas telas, não havia idealização: homens de pés sujos, velhos enrugados e jovens das ruas vestidos como anjos. A luz atravessava suas composições como se viesse de fora do quadro, cortando o escuro em feixes dramáticos. Assim nasceu o tenebrismo, marcado pelo chiaroscuro: o contraste impetuoso entre luz e sombra.
Caravaggio não fazia esboços. Trabalhando direto na tela, transformava pessoas comuns em santos. Sua recusa pela idealização não era apenas estética, era também filosófica: silenciosamente, através de suas pinceladas, dizia que o sagrado podia habitar o trivial, que a redenção nascia da lama. Mas, se por um lado sua arte era genial e revolucionária, sua vida pessoal era marcada por contradições. Temperamento explosivo, amigos perigosos: marginais, prostitutas, jogadores. Bebia e se metia em brigas. Preso várias vezes, foi acusado de calúnia, porte ilegal de armas e violência física. Atirou pratos em garçons, quebrou a janela do próprio estúdio. Sua ficha criminal era quase tão extensa quanto seu catálogo de pinturas.
O dia que definiu seu destino foi em 1606, quando assassinou Ranuccio Tomassoni durante uma briga. Não se sabe ao certo os motivos: dívida de jogo, disputa por mulher, ofensa de honra, são muitas as hipóteses, mas nenhuma definitiva. O fato é que sua vida mudou para sempre: de artista consagrado a foragido da justiça. Com uma sentença de morte sobre sua cabeça, fugiu de Roma e se refugiou em Nápoles. Foram dias de exílio e amargura, em que sua pintura se tornou ainda mais sombria e urgente. Depois seguiu para Malta, ingressou na Ordem de São João, conquistou prestígio, mas logo se envolveu em uma briga, foi preso e, mesmo após escapar, acabou expulso da Ordem como indigno.
Sempre à sombra de inimigos, seu estilo tornou-se cada vez mais obscuro e trágico. Passou por Siracusa, Messina, Palermo. De volta a Nápoles, foi atacado e desfigurado, provavelmente por inimigos malteses. Em 1610, buscando o perdão papal, embarcou rumo a Roma. Mas nunca chegou. Morreu em Porto Ercole, aos 38 anos, de causas misteriosas: malária, septicemia, complicações de ferimentos ou envenenamento. Jamais saberemos ao certo. O que se sabe é que Caravaggio encerrou a vida da mesma forma que viveu: entre violência e sombra.
Hoje, em suas obras, somos atraídos não apenas pela riqueza de detalhes, o realismo ou a beleza, mas, principalmente, pelo choque. A crueza das expressões, da carne, do sofrimento. Entre sombras e feixes de luz, Caravaggio provou que o sagrado e o profano coexistem no corpo imperfeito dos marginalizados, e que a arte pode nascer do escuro.