Quando o meu amor pela vida estiver secando

Quando o meu amor pela vida estiver secando

Cedo demais para versos de melancolia. Arranquei-os de uma canção antiga. Era a manhã de um dia qualquer. Eu fazia o desjejum na lanchonete da Tia Nair, que ficava fincada no sujo e decadente centro da cidade. Concentrava-me em dar números finais ao misto quente preparado com pão francês e mozarela na chapa. Só em descrevê-lo a boca já me enche d’água. Que delícia. A vida, de vez em quando, parecia deliciosa como um sanduíche fumegante. Sempre tocavam música de extremo bom gosto naquela birosca. Tia Nair ficara doente, combalida, velha demais para tocar os negócios, que passaram, então, a ser administrados pelas herdeiras. Vida besta que seguia sob a vitória acachapante do tempo sobre corpo. Por fim, um enorme contratempo: ouvi pelos alto-falantes uma canção antiga chamada “If”, da banda norte-americana Bread, que fez retumbante sucesso nos anos 1970. Estanquei comovido. Andava assim ultimamente, a me comover por quase nada. Senti um ruim por dentro, como se uma víscera resmungasse. Depositei o pão mordido pela metade dentro do prato. Repousei os punhos sobre a mesa. Tive a manjada sensação de um filme a passar dentro da minha cabeça. Perdi instantaneamente a fome. A pobrezinha da atendente aproximou-se e perguntou se o sanduiche de queijo tinha ficado ruim. O sanduíche estava ótimo, minha querida. Eu é que não me sentia lá muito bem. Era coisa que passava logo, com certeza. Certas músicas mexiam com o emocional da gente, transportando-nos através do tempo para lugares inusitados. Podia ter passado sem aquela inquietação matinal. Só queria devorar em paz o meu pão com mozarela e ir-me embora trabalhar, para atender pessoas e amar pessoas e odiar pessoas. Acabei tomado por um sentimento melancólico surpreendente: a saudade de quem fui antes de me permitir moído pelas engrenagens da roda viva. Na meninice e na juventude, priorizava o ócio, o lúdico, a poesia, o amor platônico, os sonhos mirabolantes e uma gama de insignificâncias que não enchiam a barriga de ninguém, como diria o meu velho. Como podia uma canção estorvar o meu dia daquele jeito? Nunca fora fluente no idioma inglês. Tirei do bolso e abri a minha própria Caixa de Pandora: o telefone celular. Esperto de verdade era o homem que não se dobrava ao smartphone. Uma rápida pesquisa pela internet traduziu para o português a letra de “If”, composta por David Gates e eternizada pela Bread em 1971. Eternizada, ao menos, na minha memória afetiva. Bread significava pão. Quanta ironia. Eu tinha fome de quê? Ainda sentia o sabor particular do sanduíche de queijo derretido sobrenadando nas minhas papilas gustativas. Gostava mais do passado quando eu era parte ativa e integrante dele. Podia ser considerado, portanto, um homem secular. “Venho do século passado e trago comigo todas as idades”, lembrei-me de ter ouvido esses versos da boca da própria autora, a poetisa Cora Coralina, moradora da Casa Velha da Ponte, no auge das suas rugas, por ocasião de uma das divertidas excursões escolares dentro de um ônibus sucateado, sem ar-condicionado, que fazia a meninada espevitar e embrulhar o estômago. Estudei bastante. Foram décadas de um esforço pessoal impressionante. Tive a desagradável a impressão de ter estudado à exaustão e não ter aprendido lá grandes coisas a respeito da vida. Mirava o lanche que jazia triste a minha frente, marcado pela mordedura dos meus dentes incisivos. Deixara no sanduíche algo que não era sequer um sorriso, senão a fome. Aquele tipo de fome que não se saciava com poesia e com insignificâncias. Recobrei o viço. Pedi à jovem atendente que me servisse um copo com água e depositei dentro dele um comprimido efervescente que espocava bolhas de alegria, como se me desse alguma espécie de bom conselho, prestes a ser preterido.  

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.