“Protegendo o Inimigo”, de Daniel Espinosa, é um thriller de espionagem com ambição clara: usar a dinâmica de perseguição e confinamento para discutir confiança institucional em um ambiente saturado de suspeita. Sem didatismos, o filme coloca um agente em ascensão, Matt Weston (Ryan Reynolds), frente a frente com um ex-operativo lendário e controverso, Tobin Frost (Denzel Washington). O cenário principal é uma casa segura na Cidade do Cabo que, em vez de garantir ordem, acelera o colapso. A partir daí, a narrativa sustenta tensão física e moral, com tiroteios secos, deslocamentos velozes e decisões tomadas sob pressão. O resultado é um produto de gênero eficiente, turbinado por um par central carismático.
Ao lidar com o imaginário de “segredos de Estado” e a aura de documentos que tudo explicariam, Espinosa prefere a superfície pragmática do risco. A CIA não aparece como bloco homogêneo, e sim como um organismo sujeito a ruídos, vazamentos e agendas paralelas. O roteiro de David Guggenheim condensa linhas narrativas e injeta reviravoltas em intervalos regulares; a lógica é manter o espectador engajado pela fricção entre ação e suspeita, não por discursos. A teoria da conspiração, aqui, funciona como contexto plausível, não como motor exclusivo. O que move o filme são protocolos que falham e escolhas individuais em corredores estreitos.
Weston encarna o funcionário aplicado em busca de promoção — e a função do personagem é precisamente colidir com a realidade menos higiênica do trabalho. Exilado em um posto burocrático no Sul da África, ele administra um esconderijo até que Frost, fugitivo cobiçado por meio mundo, cai em suas mãos. O ex-agente é acusado de negociar informações sensíveis; a missão oficial consiste em mantê-lo vivo e transportá-lo com segurança. A missão real é sobreviver a um cerco que avança de fora para dentro e de dentro para fora, já que parte da ameaça pode muito bem falar a mesma língua e usar o mesmo crachá. A equação dramática é simples e eficaz.
Denzel Washington aproveita cada minuto de tela sem recorrer a maneirismos. Seu Frost combina autocontrole, leitura aguçada do ambiente e o tipo de carisma que desloca o eixo da cena. É um antagonista que não precisa de explicações longas para conquistar atenção e que, em chave de anti-herói, organiza a ambiguidade moral do filme. Ryan Reynolds, por sua vez, entrega um Weston crível na curva de aprendizado: diligente, fisicamente presente, ainda verde no cálculo político. Quando dividem o quadro, os dois movem a história com economia de gestos. A química é um dos ativos centrais do longa, e Espinosa sabe capitalizá-la sem inflar diálogos.
O elenco de apoio oferece densidade, ainda que nem sempre aproveitada. Brendan Gleeson imprime autoridade cansada a David Barlow, superior com vocação para decisões discretas e pouco sentimentais. Vera Farmiga e Sam Shepard aparecem em papéis que sugerem camadas adicionais do organograma, mas o filme lhes reserva menos desenvolvimento do que poderiam suportar. A escolha de manter o foco no eixo Washington–Reynolds preserva clareza e velocidade, embora sacrifique oportunidades de complexificar a intriga institucional. O efeito prático é um thriller mais limpo, porém um pouco menos espesso.
Em termos formais, Espinosa aposta em textura e geografia. A Cidade do Cabo não serve como cartão-postal; é um espaço funcional de perseguições, estradas, bairros com topografia acidentada e interiores que comprimem movimento. A câmera privilegia proximidade e impacto, evitando estilização excessiva. A montagem alterna respiro e tranco com senso de tempo: planos mantidos o suficiente para gerar suspense, cortes que não quebram a orientação espacial. Nos tiroteios, a trilha não encobre o som seco dos disparos; nas lutas, o corpo pesa, o objeto machuca. É ação que busca verossimilhança sem trocar legibilidade por tremedeira gratuita.
O roteiro trabalha o tema da corrupção endêmica sem slogans. Há indícios de conivência e negócios paralelos, mas o filme resiste a transformar cada revelação em sermão. Isso contribui para a sensação de mundo coerente com o gênero: o sistema falha porque é operado por pessoas, e as pessoas falham por interesses, medo ou cálculo. Essa abordagem, menos barulhenta, dá ao filme um ponto de vista plausível sobre o chamado “fogo amigo” e os limites da lealdade. A intriga não depende de um vilão grandiloquente, e sim de engrenagens que se desgastam em silêncio.
Nem tudo funciona no mesmo nível. A espiral de reviravoltas, sobretudo no terço final, alonga a projeção além do necessário e exige energia que o filme nem sempre sustenta. Há momentos em que a história patina para manter a tensão, e a ação assume a tarefa de cobrir lacunas. Ainda assim, a condução firme de Espinosa e o trabalho do elenco seguram o conjunto. A economia de explicações também cobra preço: a presença de Farmiga e Shepard, por exemplo, poderia ancorar melhor alguns desdobramentos, caso tivessem mais tempo e função dramática.
Como thriller de espionagem, “Protegendo o Inimigo” entrega o que promete: ritmo, perigo, choques de interesse, uma dupla central que sustenta a tela. A ambição de comentário político aparece por atrito, não como tese; a execução valoriza a fisicalidade da perseguição e a lógica operacional de protocolos sob ataque. Quando a casa segura se torna armadilha, o filme encontra sua imagem-síntese: estruturas projetadas para conter crises podem, sob as pessoas certas e os motivos errados, amplificá-las. É nesse ponto que Espinosa demonstra maior controle — no entendimento de que a tensão nasce da combinação entre espaço, tempo e decisão.
A disponibilidade no streaming reforça a vocação do título para o consumo imediato: é um filme que funciona bem em casa, sem perda de clareza ou impacto. A fotografia preserva contrastes úteis, a trilha evita excessos e a narrativa não depende de surpresas artificiais. Há um par de soluções previsíveis, é verdade, mas o carisma de Washington e o comprometimento físico de Reynolds compensam. No saldo, um produto sólido, com assinatura reconhecível e atenção às ferramentas do gênero, ainda que sem a reinvenção que alguns sinais prometiam.
“Protegendo o Inimigo” permanece como boa opção para quem busca ação com verniz de espionagem e um olhar pragmático sobre instituições. Não reinventa a roda, mas a faz girar com eficiência e senso de risco. A síntese é clara: um thriller correto, pontuado por uma grande performance e amparado por direção segura.
★★★★★★★★★★