Absolutamente inesquecível: drama de Spielberg com Anthony Hopkins, ganhador de 4 Oscars, na Netflix Divulgação / DreamWorks Distribution

Absolutamente inesquecível: drama de Spielberg com Anthony Hopkins, ganhador de 4 Oscars, na Netflix

“Amistad” organiza a experiência do espectador em duas frentes claras: a do mar e a da lei. No mar, o filme registra a brutalidade do tráfico transatlântico com imagens de porões superlotados, correntes e contabilidade de perdas humanas. Na lei, ele acompanha audiências, petições e estratégias, em salas onde papéis definem destinos. Spielberg administra essas duas frentes com economia expressiva; ele recusa shortcuts emocionais e aposta na observação paciente do gesto, do som e do espaço.

Djimon Hounsou, no papel de Cinque, sustenta um protagonista de presença física e inteligência tática. Há cálculo no motim, há medo, há fome; há uma forma de liderança que nasce da urgência da sobrevivência. O ator desenha essa liderança com respirações contidas, olhares firmes, pequenas hesitações que revelam prudência. O filme lhe concede tempo de tela para que a dignidade se imponha sem discursos de autopromoção. Quando a narrativa recua para a lembrança da captura em Serra Leoa, o impacto nasce da precisão: espancamentos, separações, negociações entre traficantes africanos e europeus; nada aparece como parêntese ilustrativo, tudo compõe material de prova.

Em terra, a trama cresce pelo confronto entre interesses. Roger Baldwin, interpretado por Matthew McConaughey, inicia o caso pelo viés da propriedade marítima e amadurece para a defesa da liberdade dos africanos. A curva do personagem convence porque a atuação abandona maneirismos e se concentra em aprender e ouvir. Theodore Joadson, vivido por Morgan Freeman, funciona como ponto moral da narrativa: ele exige foco no essencial, cobra coerência e recusa a acomodação que transforma os africanos em peça de xadrez político. Martin Van Buren, papel de Nigel Hawthorne, expõe a pressão eleitoral e a sensibilidade às demandas do Sul escravocrata, lembrando que a Justiça americana do período respondeu, com frequência, a cálculos de gabinete.

O filme compreende que a linguagem decide destinos. A figura do intérprete James Covey, apresentada por Chiwetel Ejiofor, devolve a Cinque a capacidade de narrar a própria vida. Cada resposta traduzida altera a balança do julgamento. A presença do Mende na sala de audiência impede que a história dos africanos seja reduzida a ruído. Spielberg filma essas trocas de modo direto: planos que valorizam rostos, o fluxo entre pergunta, pausa e tradução, a concentração de juízes e juristas. A tensão cresce sem pirotecnia, apoiada na ideia de que compreender a palavra do outro é o primeiro passo de qualquer decisão justa.

A direção de fotografia de Janusz Kamiński define territórios visuais com nitidez. O navio tem luz escassa, ar espesso e texturas ásperas; as docas e as ruas exibem cores terrosas; o tribunal aparece em tons frios e brancos que sugerem assepsia institucional. Essa organização visual sustenta a narrativa: a passagem do porão para a sala de audiência não anula a violência, apenas muda o seu registro. A trilha de John Williams adota motivos contidos, que entram e saem em momentos de maior densidade; há recuos calculados para que água, correntes, passos e respirações respondam pelo clima da cena. A montagem evita sobressaltos gratuitos e privilegia o acompanhamento das falas e dos rituais jurídicos; a sensação é de proximidade com a rotina do processo.

A partir da metade, Anthony Hopkins ganha espaço como John Quincy Adams. O ex-presidente aparece com o peso de quem domina precedentes e conhece o alcance político do caso. O grande discurso que coroa o arco dramático não se apoia em fogos retóricos. Há construção de argumento, remissão a documentos, apelo à memória dos fundadores e uma defesa direta da dignidade humana. Spielberg filma a fala com sobriedade: o enquadramento favorece o trabalho do ator e preserva o contracampo de Cinque, que escuta com atenção e devolve, com o olhar, a razão concreta de toda aquela retórica. A sequência impressiona pela contenção e pelo encaixe entre palavra e situação.

“Amistad” também esclarece a pressão institucional. Há juízes de primeira instância que hesitam, há advogados que manobram, há emissários da Casa Branca que intervêm para adiar decisões. Quando a Suprema Corte entra no quadro, o filme indica a composição majoritariamente sulista daquele colegiado, em 1839, e prepara o público para um desfecho incerto. O julgamento final propõe uma leitura específica: os africanos são pessoas livres, sequestradas ilegalmente, e a lei não pode sancionar esse crime. O alívio narrativo é nítido, mas o longa não transforma a vitória judicial em absolvição histórica. A estrutura do tráfico continua fora do tribunal, espalhada por portos, plantações e mercados.

Há uma virtude rara no cuidado com detalhes. A câmera registra mãos que partilham alimento, olhos que medem distância, mapas que prometem saída, cadeiras que rangem durante uma audiência, selos que carimbam petições, portas que se fecham entre um gabinete e outro. Esses elementos constroem confiança no relato. O filme não recorre a explicações didáticas em excesso, porque confia no acúmulo de sinais e na inteligência do público. A violência, quando aparece, tem sentido de prova: ela esclarece a dimensão dos crimes e confere contexto para as escolhas dos personagens.

A reconstituição de época é robusta. Figurinos e cenários não chamam a atenção por exuberância; servem à clareza do período e à verossimilhança dos ambientes. O navio tem organização crua e funcional; as salas públicas seguem hierarquias e distâncias; as residências revelam diferenças de classe. O conjunto forma uma paisagem crível para que o drama jurídico respire.

O filme resiste a leituras apressadas. Ele conecta o caso específico de 1839 a um debate maior sobre direitos, cidadania e responsabilidade do Estado. Ao destacar a centralidade da tradução, “Amistad” lembra que a inclusão começa pela língua e passa pela escuta efetiva em espaços de poder. Ao expor a máquina jurídica, revela o ritmo lento de mudanças que dependem de coragem política. Ao entregar um protagonista africano com agência, repara um desequilíbrio frequente em narrativas de escravidão que retiram voz de quem viveu a violência.

No encerramento, a decisão favorável aos africanos oferece catarse medida. O retorno de Cinque a Serra Leoa guarda perdas que nenhuma sentença repara. O filme fecha sem triunfalismo e reafirma um compromisso: olhar de frente o passado para qualificar escolhas do presente. Para um público contemporâneo, “Amistad” continua útil porque explica um episódio específico e ilumina questões ainda atuais — linguagem, justiça, representatividade, política. Trata-se de cinema histórico com propósito claro, atenção aos fatos, respeito às pessoas retratadas e ambição de debate público.

Filme: Amistad
Diretor: Steven Spielberg
Ano: 1997
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★