A vida obriga-nos a tomar caminhos nos quais não nos reconhecemos, e uma vez que essa senda meio torta abre-se para nós e enveredamos por ela, ninguém é capaz de prever onde ou de que forma iremos terminar. Fugir pode ser a única atitude sábia a se tomar diante do perigo, um chamado da natureza para que preservemos nossa saúde e nossa vida. Há quem fuja do amor, outros tentam dar as costas às próprias escolhas, enquanto a verdade, feito o sol, não só ilumina como queima. Essas evasivas só fazem prolongar os arcaicíssimos embates que alguém trava consigo mesmo, adiando a urgente libertação do espírito. Rona atravessa uma zona cinzenta entre o real e o ilusório, o verdadeiro e o enganoso, tudo em busca de recuperar-se e conhecer-se, como se assiste no ótimo “De Volta ao Mar”. Aqui, a alemã Nora Fingscheidt coloca em prática uma de suas especialidades e disseca a alma frágil de uma mulher doente. Com energia ainda maior do que despendera no agressivo “Imperdoável” (2021) ou no surpreendente “Transtorno Explosivo” (2019), Fingscheidt mira as cicatrizes de Rona, contando com uma ajuda fundamental.
A natureza é uma força que manifesta seu poder nas Ilhas Órcades, arquipélago distribuído por dezesseis quilômetros ao norte da Escócia, e Rona dá a impressão de ser uma extensão dos ventos e das ondas, tentando em vão não arrastar ninguém em suas arrebentações. Junto com Fingscheidt, a jornalista e escritora escocesa Amy Liptrot adapta seu livro de memórias, de 2017, de modo a resgatar passagens trágicas de sua vida, especialmente depois de tomada pelo alcoolismo. Não por acaso, a protagonista empresta seu nome de uma das novecentas ilhas do litoral escocês, para onde regressa depois de uma temporada em Hackney, o bairro de agitada vida cultural ao leste de Londres. Nos seus momentos felizes, Rona aparece ao lado de amigos em festas que varam a noite, trocando beijos com Daynin, o namorado vivido por Paapa Essiedu. Nos quase trágicos, perde o controle depois de secar uma meia dúzia de copos, xinga, agride, sai pela rua, aceita carona de estranhos, é surrada e por pouco não sofre um estupro. A diretora recorre a flashbacks para intercalar essas duas metades da personagem central, que nas Órcades também não encontra a paz de espírito de que carece tanto. Hospedada na casa da mãe, uma protestante fervorosa, os atritos não cessam, e a bebedeira, mesmo depois de frequentar as reuniões dos Alcoólicos Anônimos, ganham uma nova rodada.
A chance de ouro de Rona, mestre em biologia marinha, é o trabalho como pesquisadora de pássaros, entre uma e outra visita ao pai, esquizofrênico. Esse é o filme dentro do filme, em que Fingscheidt aproveita para esclarecer algumas questões ainda menos compreendidas da personalidade de Rona e oferecer possíveis explicações quanto a sua doença. Haveria uma razão genética para sua inclinação à bebida ou é tudo uma sequência de resoluções individuais desastrosas, de que só ela mesma tem a culpa? Desde o princípio, Saoirse Ronan, uma dos produtores, é habilidosa em dar vazão às diversas manifestações do temperamento de Rona, deixando no ar a possibilidade de uma mudança, sem contudo dar pistas concretas quanto ao destino de sua anti-heroína. O empenho por registrar o canto de um certo codornizão, uma ave migratória rara, baldada até o último minuto de filme, catalisa a ideia de ciclos, começos e recomeços, em que não cabem os subterfúgios que o título original insinua. Rona não precisa morrer afogada nem virar foca para reencarnar.
★★★★★★★★★★