Um dos filmes mais belos da história do cinema acaba de voltar ao catálogo da Netflix Divulgação / Miramax Pictures

Um dos filmes mais belos da história do cinema acaba de voltar ao catálogo da Netflix

O cenário inicial é uma lousa no corredor do MIT. Nela, um problema de grafos, intrincado e desafiador, repousa como enigma destinado apenas a iniciados. Pela manhã, a solução aparece, escrita com firmeza anônima. O que parecia impossível, dois anos de trabalho de um professor, é decifrado na noite de um zelador. Esse homem é Will Hunting, interpretado por Matt Damon, cuja presença na tela alterna entre a brutalidade dos becos de Boston e a serenidade impossível de uma mente que calcula como se respirasse.

Damon, ao lado de Ben Affleck, assina o roteiro que lhes daria o Oscar, e há nele uma ousadia crua, uma recusa de adornos. A narrativa não se apoia em artifícios sentimentais; prefere observar os gestos dos personagens em sua precariedade. É um texto que flerta com a tradição dos dramas estudantis. “Sociedade dos Poetas Mortos” está na sombra da comparação, mas “Gênio Indomável” encontra sua própria respiração, menos lírica e mais devastadora.

A direção de Gus Van Sant, cineasta que já havia transitado por territórios experimentais, assume aqui um equilíbrio raro. O filme não cede ao academicismo nem se perde em formalismos. A câmera busca rostos e hesitações, permanece em planos alongados quando seria mais fácil cortar, instala no espectador a sensação de que está escutando confissões roubadas. Não há pressa. O tempo é moldado pela resistência do protagonista, por sua recusa em admitir que o mundo lhe oferece algo além da sobrevivência.

Will, órfão, criado entre espancamentos e abandono, exibe sua inteligência como se fosse uma arma. Ele vence discussões em bares citando livros obscuros, humilha acadêmicos com ironia cortante, mas não consegue atravessar as paredes da própria raiva. O roteiro se recusa a transformar o gênio em herói exemplar. Prefere retratá-lo como homem em constante risco de destruição. Cada avanço na vida intelectual é contrabalançado por quedas brutais na violência cotidiana, como se a matemática, por mais exata que seja, não pudesse impedir os impulsos que o levam à prisão.

É nesse espaço de tensão que entra Sean McGuire, o psicólogo vivido por Robin Williams, em uma das atuações mais intensas de sua carreira. Williams abandona a comédia, abandona o tom caricatural que o celebrizou, e constrói uma figura feita de cansaço e sabedoria. Seu Sean é um homem que carrega o luto da esposa, que encontra em Will não apenas um paciente, mas a chance de ressignificar a própria vida. O encontro entre os dois não é terapêutico no sentido convencional. É uma luta de vontades, uma batalha subterrânea em que cada palavra abre feridas e cada silêncio insinua uma reconciliação possível.

O filme encontra sua maior força nesses diálogos. Não há espetáculo visual maior do que ver dois atores sustentando olhares, medindo pausas, improvisando respiros que parecem vindos do âmago. A cena do banco no parque, em que Sean descreve a solidão de Will diante do mundo, permanece como uma das mais comoventes do cinema dos anos 1990. Ali, o psicólogo não apenas interpreta, mas desarma, revela a limitação de uma inteligência que não conheceu amor ou perda. É uma lição sobre vulnerabilidade e sobre a possibilidade de recomeço.

Ben Affleck, no papel de Chuckie, o amigo leal e brutal de Will, cumpre função decisiva. Ele não brilha pelo carisma, mas pela doação. Sua presença atesta que a amizade também é medida de redenção. Chuckie sabe que não será gênio, que não romperá com a periferia de Boston, mas sonha que o amigo o faça. O diálogo em que confessa esperar, um dia, bater na porta de Will e não encontrá-lo mais, é talvez a mais bela declaração de amizade do cinema contemporâneo.

A narrativa costura também uma relação amorosa, vivida por Minnie Driver, que se mostra mais do que um interesse romântico. Sua personagem é vital porque oferece a Will a chance de amar sem cálculos, de viver uma intimidade que não se resolve em fórmulas. Ela o obriga a escolher entre a fuga permanente e o risco da entrega. Essa tensão íntima, somada ao embate com Sean, estrutura o arco de transformação do protagonista.

Historicamente, “Gênio Indomável” foi lançado em 1997, em um momento em que Hollywood ainda privilegiava narrativas épicas ou espetáculos de efeitos visuais. A ousadia do filme foi apostar em um drama humano, apoiado em roteiro e atuações, sem concessões ao mercado. Foi sucesso de bilheteria, mas sobretudo foi um triunfo artístico, revelando Damon e Affleck como roteiristas e consolidando Van Sant como cineasta capaz de dialogar com o mainstream sem perder densidade autoral.

A crítica social é latente. O filme não romantiza a pobreza, nem suaviza a violência de bairros marcados pela desigualdade. Ele reconhece a injustiça estrutural, mas não abdica da ideia de livre-arbítrio. A inteligência de Will não é suficiente se não houver escolha, se não houver a coragem de abandonar o ciclo de autodestruição. É nessa chave que a obra se inscreve como reflexão sobre destino e responsabilidade.

Do ponto de vista estético, Van Sant cria um retrato visual sóbrio, evitando o virtuosismo. Os enquadramentos buscam naturalidade, captando a luz de Boston em tons acinzentados, reforçando a atmosfera de melancolia. A música de Danny Elfman, distante do tom carnavalesco que por vezes marca sua obra, aqui se revela contida, quase transparente, deixando espaço para a canção final de Elliott Smith, que fecha o filme em melodia cortante.

Mais de duas décadas depois, “Gênio Indomável” permanece atual. Não apenas pelo talento dos envolvidos, mas porque seu tema central, o embate entre potencial e medo, entre inteligência e trauma, é universal. A cada geração há jovens que carregam dons extraordinários e, ao mesmo tempo, feridas que ameaçam anulá-los. O filme é um lembrete de que não basta reconhecer a genialidade. É preciso criar condições para que ela floresça.

Filme: Gênio Indomável
Diretor: Gus Van Sant
Ano: 1997
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★