A Primeira Guerra não desapareceu do cinema; apenas mudou de foco. “Amsterdam”, de David O. Russell, parte desse arquivo sempre ativo para examinar outra coisa: a fabricação de consenso, a política de salão, a amizade como último abrigo em épocas de discurso inflamado. Em 1933, Nova York fervilha; 1918 permanece à espreita. O título promete Holanda, mas o filme retorna sempre à cidade de origem do diretor, tratada como centro nervoso de um país que saiu da guerra com a musculatura reforçada. Há humor, há excesso calculado, há um crime que organiza a intriga sem dominá-la. O resultado combina thriller social e crônica urbana com ambição e risco.
A narrativa começa quando um trio de amigos, por acaso e má sorte, se vê preso às consequências de um assassinato que não cometeu. O contexto importa. O fascismo cresce na Europa; nos Estados Unidos, a retórica da ordem circula por clubes discretos e escritórios bem mobiliados. Russell filma a circulação dessas ideias como quem acompanha um vírus: elas avançam por meio de cortesias, doações e convites; ganham respeitabilidade antes de ganharem ruas. Em paralelo, a obra volta a 1918 para registrar o momento em que esses personagens experimentaram um intervalo de euforia em Amsterdam, cidade-abrigo que opera como reserva afetiva e estética. Essa alternância de tempos cria uma fricção útil; a esperança de ontem encontra o pragmatismo brutal de hoje.
No centro, Burt Berendsen, cirurgião veterano que perdeu o olho direito na Batalha do Marne, em setembro de 1914. O consultório, na rua 138, atende ex-combatentes que ainda negociam com a dor; Burt prepara um elixir analgésico eficaz e perigoso, impregnado de opioide. A imagem é direta: o país também se apoia em remédios que prometem alívio rápido. Christian Bale constrói o personagem sem ornamentos supérfluos; há contenção, fragilidade física, ironia seca. Ele funciona como mediador entre duas forças do filme: a amizade concreta e a maquinaria abstrata de interesses que se move acima das cabeças.
Harold Woodman, interpretado por John David Washington, e Valerie Voze, vivida por Margot Robbie, completam o triângulo. A relação entre os três se sustenta menos em romantização do passado e mais em experiências compartilhadas de sobrevivência. A Amsterdam de 1918 é lembrada como período de suspensão, quando a dor tinha pausa e a cidade oferecia uma espécie de reinício possível. Essa memória não é escapismo; é método. Russell a usa para medir a distância entre promessa e realidade. Sempre que a trama ameaça se tornar apenas um quebra-cabeças de investigação, a lembrança de Amsterdam reintroduz escala humana.
A direção mantém o traço conhecido do cineasta: diálogos abundantes, movimentação de elenco em tempo acelerado, humor que corta a solenidade antes que ela se instale. Essa inclinação ao excesso, às vezes criticada como dispersão, revela aqui uma lógica clara. O filme quer reproduzir a sensação de ruído político e informacional do período; interessa-lhe mostrar como a verdade se dilui quando bem apresentada. A montagem acompanha esse projeto com fluidez; as idas e vindas temporais não confundem, organizam. A fotografia dá brilho controlado às cenas de 1918 e escolhe contrastes mais frios para 1933; a mudança de temperatura visual funciona como bússola.
O roteiro recusa a explicação didática do fascismo. Em vez de lições, oferece gestos: uma reunião privada, um patrocínio generoso, um discurso polido que aos poucos normaliza a violência. O Movimento Nacional Socialista nos Países Baixos, que ganhará força na década seguinte, surge como referência de fundo; a Europa de Mussolini fornece uma gramática que atravessa o Atlântico. A presença de Franklin Delano Roosevelt como horizonte político do período dá medida norte-americana à disputa. É um conflito de linguagem e de símbolos, não apenas de tropas.
A longa abertura dedicada a Burt cumpre dupla função. Apresenta o protagonista e, ao mesmo tempo, estabelece o tom de observação social que o filme pretende sustentar. O consultório, sempre cheio, revela um país que ainda negocia com as consequências da guerra. A piada aparece, e logo recua; o riso, aqui, é estratégia de aproximação. Quando a trama criminal se intensifica, esse piso realista continua sustentando a narrativa. A eventual solução do homicídio interessa, mas o que fica é a anatomia das forças que disputam a cidade.
O elenco volumoso, marca do diretor, funciona como ecossistema. Entradas e saídas são administradas com senso de ritmo; as participações pontuais não soam decorativas. A escrita oferece a cada personagem um gesto definidor; o filme não exige que todos expliquem motivações em voz alta. A trilha empurra a ação sem tirar o ar da cena; em momentos-chave, recua e permite que o silêncio faça o serviço.
Há uma leitura possível de “Amsterdam” como carta de amor à Nova York. O título remete a outra cidade, mas o filme pergunta, o tempo todo, o que significa morar no centro simbólico de um país que assumiu a hegemonia após 1918. A resposta é ambivalente. O orgulho convive com o incômodo; a energia urbana convive com uma política de bastidores que prefere operar longe da luz. A obra reconhece essa contradição sem transformá-la em tese, preferindo observação paciente a conclusões fáceis.
A opção por misturar drama, comédia e mistério raramente desequilibra o conjunto. Quando o humor irrompe, serve para quebrar velocidades e preservar a atenção. Quando a gravidade retorna, não parece importada de outro filme. Esse equilíbrio tem custo: o risco de que parte do público identifique o excesso de informação como barulho. Mesmo assim, a decisão de sustentar tensão temática por sobreposições, e não por simplificações, dá ao projeto densidade pouco comum no circuito industrial.
No plano político, “Amsterdam” evita slogans. O fascismo mostrado aqui não é bicho de sete cabeças; é rede de interesses, preço de silêncio, operacionalidade cínica. O filme aponta mecanismos sem anunciar uma moral. Ao mesmo tempo, não se omite. Indica como o vocabulário do autoritarismo se torna palatável, como a elegância de certos ambientes amortiza alarmes. O caminho é documental na superfície e ficcional no desenho; a combinação funciona.
Resta a amizade. O trio central sustenta o filme porque escapa da idealização. Burt, Harold e Valerie não são arquétipos; são pessoas que tomam decisões sob pressão e pagam por elas. Quando a narrativa recolhe o mistério e expõe a engrenagem, o vínculo entre os três permanece como a única instância não negociável. O gesto final que os reúne não serve de lição universal; serve de constatação. Em tempos de ruído e disfarce, lealdade ainda tem consequência.
“Amsterdam” é irregular em alguns trechos; a ambição de cobrir muitos níveis às vezes derrama. Quando isso acontece, o filme compensa com recortes de observação precisa, com escolhas de atuação que mantêm as cenas vivas, com uma curiosidade honesta pelo mundo que retrata. No saldo, oferece uma leitura vívida de um período histórico que costuma chegar ao espectador em preto e branco. Aqui, ele ganha cor, gradação, disputa.
★★★★★★★★★★