Há gente que de tão rara passa despercebida, como se o mundo fosse todo feito de indivíduos que pensam que a vida só importa se tomada à luz de uma imensa vizinhança, de um povoado que não observa limites ou fronteiras onde todas as pessoas, mais que entender as necessidades umas das outras, são sensíveis a essas urgências e não veem nada de errado em se desassossegar até nascer uma solução que contemple a todos. Mesmo quem já provou de sofrimentos os mais diversos sabe que a vida é boa, e os felizardos que guardam na lembrança imagens mais prazenteiras que desgostosas estão cientes que uma das verdades da vida é que ninguém é feliz o tempo todo. Então, uma boa alternativa para que sejamos todos felizes o maior tempo que conseguirmos, como resta evidente em “Um Homem Abandonado”, é esquecermo-nos de nossas próprias questões durante aqueles momentos em que não vamos mesmo atingir nenhum resultado que mereça ritos de autojactância, olhar em volta e perceber que a pedra no caminho alheio para nós tem jeito de flor — e flores, além de perfume, têm espinhos.
Çagri Vila Lostuvali eleva dois personagens à categoria de heróis, cada qual a seu modo, e seu filme, de tão pouco ambicioso, supera muitas das expectativas numa narrativa algo hermética, mas sem dúvida tocante. O diretor fala de uma Turquia anacrônica, em parte por causa do desinteresse criminoso de quem manda, e assim vai-se urdindo uma trama quase ingênua, todavia cheia de reflexões. Nesse conto de fadas pós-moderno, uma criança enfrenta a grande rejeição que irá arrastá-lo para um limbo profundo e trevoso. Aos catorze anos, Baran é obrigado a assumir a culpa pelo acidente provocado pelo irmão mais velho, Fatih, sem nenhuma chance de escolha. Fatih, como o roteiro de Deniz Madanoglu e Murat Uyurkulak explica, é alcoólatra, não consegue livrar-se do vício, e segue a cometer erros quase tão definitivos quanto o que resultou na morte de um pedestre, homicídio culposo pelo qual o caçula acaba pegando quinze anos de prisão. Não há cenas de Baran na cadeia, mas no momento em que volta à liberdade, ciente de que sua vida jamais será a mesma, Fatih o espera, junto com a filha.
É necessária uma dose de paciência para se chegar ao ponto alto da história, mas uma vez que se vence essa etapa, o público assiste a um drama familiar contrabalançado com ritmo, talvez até em demasia. Têm-se a sensação de que Lostuvali é forçado a espremer as muitas subtramas em meia hora, o que nem sempre permite que se possa analisar o trabalho do elenco com a devido cuidado. Baran passa um tempo no apartamento luxuoso de Fatih, até ser escorraçado pela cunhada, e vaga sem rumo em busca de emprego, dispensado por ser um ex-presidiário. Quando enfim arranja colocação, na oficina de Mesut, seu irmão parece novamente o querer atrapalhar, envolvido numa outra colisão relacionada ao álcool. Agora, contudo, ele mesmo foi a vítima, além da esposa, que morre, e Lidya, a sobrinha, passa a viver com ele. Mert Ramazan Demir é habilidoso ao dar ênfase aos vaivéns de Baran, numa boa mistura de euforia e introspecção. Num papel ingrato, Edip Tepeli resvala na caricatura do bêbado angustiado, e a volta do personagem, na iminência do desfecho, não empolga. A interação entre Demir e Ada Erma é, sem dúvida, a melhor coisa em “Um Homem Abandonado” — um pouco como o que se tem em “Milagre na Cela 7” (2020), dirigido por Mehmet Ada Öztekin, que conta a história de um pastor de ovelhas com atraso intelectual que precisa provar sua inocência ao ser preso por um crime que não cometeu —, mas o Mesut de Ercan Kesal rouba a cena em várias ocasiões.
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