Há histórias que parecem respirar pelas frestas: não pedem explicação, convocam a memória. “Pérolas no Mar”, de René Liu, escolhe esse registro oblíquo. O filme observa dois jovens que partem do mesmo lugar e, por um tempo, acreditam caminhar lado a lado. Depois, a vida, o trabalho que não vem, a cidade que cobra, o corpo que cansa, redesenha as margens. A narrativa oscila entre lembrança e presente, como se a própria matéria do tempo coagisse em planos distintos; o brilho do passado, a sobriedade do agora. E, quando se reencontram, Lin Jianqing e Fang Xiaoxiao descobrem que o amor é, antes de tudo, uma questão de escala.
Dirigido pela cantora e atriz taiwanesa René Liu em sua estreia como cineasta, o longa de 2018 consolidou-se como um pequeno fenômeno popular e crítico no circuito sinofalante. No Brasil, circula sob o título “Pérolas no Mar”. Protagonizado por Jing Boran e Zhou Dongyu, acompanha um casal que nasce do acaso, uma conversa num trem apinhado, na grande migração do Ano-Novo chinês, e amadurece à força nas arestas de Pequim. A cada escolha, uma renúncia; a cada avanço, um preço cobrado em silêncio.
A estrutura formal sustenta essa ambição de maturidade. René Liu adota um dispositivo simples e rigoroso: o presente, exangue, em preto e branco; as lembranças, saturadas de cor. Nada de truque; trata-se de uma gramática visual que confia no espectador. O contraste não aponta para nostalgia fácil, mas para uma espécie de geologia afetiva, estratos distintos de uma mesma formação. Quando os dois estão em cena, o enquadramento prefere os interstícios: corredores, vagões, salas de espera, janelas de metrô onde o rosto é mais reflexo do que pele. Há método nessa timidez da câmera: a vida urbana como sucessão de passagens, a intimidade como negociação entre fluxos.
O roteiro começa no encontro, mas o interesse real está no esforço cotidiano. Jianqing aspira a se tornar desenvolvedor de jogos; Xiaoxiao, consciente da precariedade que a cerca, busca estabilidade e pertencimento numa metrópole que exige credenciais. O desejo pelo “hukou”, o registro que ancora a vida urbana na China, é um dos subtextos mais finos do filme. No início, dividem um quarto minúsculo, inventam rituais domésticos, atravessam empregos provisórios; do lado de fora, salários curtos e prazos longos. Quando a fricção entre sonho e orçamento se impõe, o vínculo resiste como pode, até que não resiste mais. Nada explode; o que há é desgaste, um tipo de estafa dos afetos.
É significativo que o reencontro ocorra no ar, atrasos e escalas mediante, num voo que comprime horas e destinos. Distantes do fervor da juventude, conversam como quem manuseia um objeto frágil que conhecem de cor. O filme evita a tentação do acerto de contas e prefere a arqueologia das escolhas. O passado se revela menos como coleção de cenas e mais como sistema de causas. Raramente a dramaturgia romântica recente tratou com tanta sobriedade a lógica do desalinho amoroso, o modo como duas trajetórias compatíveis num momento torna-se tangentes no seguinte.
Essa sobriedade também está nos corpos. Zhou Dongyu sublinha em Xiaoxiao uma mistura complexa de elã e cálculo, ternura e dureza aprendida; nada de musa indulgente, nada de femme fatale. Jing Boran compõe um Jianqing que equilibra obstinação e vulnerabilidade; não há heroísmo no seu talento, apenas persistência e cansaço. Em torno deles, uma constelação de figuras secundárias confere densidade social ao drama, com destaque para Tian Zhuangzhuang, presença de gravidade quieta, cujo trabalho rendeu indicação no Golden Horse, a mais tradicional premiação do cinema sinofalante. O reconhecimento institucional à diretora estreante, no mesmo certame, não é detalhe: valida uma inteligência de mise-en-scène que prefere o rigor à pirotecnia.
A fortuna pública do filme ajuda a explicar sua delicadeza de engenharia emocional. “Pérolas no Mar” bateu recordes e atravessou fronteiras, tornando-se um marco de bilheteria para uma obra dirigida por mulher no mercado chinês, sinal de que há apetite para romances que não tratam o espectador como refém do final feliz. Não é só um número; é um indicativo de que o melodrama, quando observa a economia real da juventude urbana, encontra audiência. A plateia reconhece ali a pedagogia do fracasso e a política das pequenas vitórias.
Importa dizer: esse não é um tratado contra a paixão, tampouco um memorial de queixas. O filme percebe a paixão como experiência de linguagem, os amantes criam um dialeto, um ambiente, um humor privado, e interroga que condições materiais são necessárias para que esse idioma não se esfarele. Ao associar o presente a uma paleta descolorida, Liu não está sugerindo que o amor envelheceu e perdeu cor; está lembrando que a maturidade reorganiza prioridades, reduz ruídos e institui outras escalas de contraste. O preto e branco funciona como dispositivo ético, o que força a ver o que sobra quando os filtros saem de cena.
Há, claro, uma tradição à qual o filme responde. O romance urbano asiático dos últimos trinta anos ensinou a ver a cidade como rizoma afetivo, não apenas território, mas campo de forças onde pertencimento, mobilidade e renda disputam cada enlace. “Pérolas no Mar” não recorre à poesia rarefeita de um Wong Kar-wai nem ao realismo estilhaçado de um Jia Zhangke; sua ambição é outra: construir um relato de superfície limpa, capaz de fazer da moderação formal uma forma de verdade. O gesto de Liu é jornalístico no melhor sentido, observar, montar, hierarquizar, suprimir o excesso, sem jamais abdicar da vibração artística.
O que a narrativa recusa, com firmeza, é o conforto da moral pronta. Xiaoxiao não é interesseira; é uma mulher que mede o peso de cada escolha no contexto de um país em transformação. Jianqing não é o idealista inofensivo; é um trabalhador especializado tentando encontrar tempo e dinheiro para lapidar seu ofício. As cenas de festa na cidade natal, em que a performance de sucesso precisa substituir as lacunas do presente, compõem um retrato social de rara precisão: a província que cobra conquista, a metrópole que raramente a concede. Nessa fricção, o amor é muitas vezes o primeiro a rachar.
Quando a separação enfim chega, Liu foge do estardalhaço. A mise-en-scène aposta no esgar de um gesto cotidiano, no corte que interrompe uma frase, no corredor que se alonga. É um cinema que confia nos interstícios e que, por isso, deixa resíduos. O último terço, com seu inventário de perdas silenciosas, resolve sem espetáculos o dilema que atravessa o filme: amar pode ser fracassar com elegância, reconhecer que a forma de um sentimento, às vezes, não cabe mais na forma da vida. A melancolia que sobra não é derrota; é claridade.
Na chave factual, vale registrar o contexto de produção e recepção. “Pérolas no Mar” nasceu como projeto de estreia de uma artista já consagrada na música e na atuação, e foi rapidamente adquirido para distribuição global, o que ampliou o alcance para públicos que, por ignorância, preconceito ou simples inércia de consumo, pouco visitam a cinematografia chinesa contemporânea. O circuito de prêmios acompanhou a boa fortuna, com indicações ao Golden Horse para direção estreante e ator coadjuvante, além de menções em plataformas e publicações internacionais. Em suma, não se trata de um achado escondido, mas de uma obra que transitou entre os registros do sucesso popular e da estima crítica.
A eficácia do filme decorre também de um desenho de produção que recusa a pressa. O trabalho de elenco é afinado, a decupagem é precisa, a montagem entende quando interromper um gesto para não ferir a verossimilhança. Não há lacunas escancaradas nem virtuosismo gratuito; a música entra com parcimônia, a fotografia disciplina a sedução do cartão-postal, o cenário não se impõe como catálogo turístico de Pequim. A economia de meios não impede delicadezas, uma luz acesa no fim do turno, um prato improvisado, o relevo do baço cotidiano em que se grava o que realmente conta.
Se há um centro ético na proposta, ele está no reconhecimento de que o amor, sozinho, não basta. Não por cinismo, mas por método: vínculos duram quando encontram infraestrutura, quando há teto, tempo, comida, margem para o imprevisto. O filme é honesto ao apontar que a grandeza do sentimento não dispensa logística e que romance, quando sobrevive, deve muito à gestão do prosaico. Não é a sentença mais romântica, mas talvez seja a mais útil que o cinema recente ofereceu aos que insistem em amar na cidade grande.
Por isso “Pérolas no Mar” deixa a impressão de que tratou o espectador como adulto. Convida a recordar sem dourar a memória, permite lamentar sem castigo, dispensa mistificações sobre destino. O gesto final, não de redenção, mas de entendimento, reconfigura os contornos do que foi vivido. O filme encerra sem alarde, como quem recolhe com cuidado um objeto valioso que tem lascas e, ainda assim, guarda brilho. É desse brilho que são feitas as pérolas: pressão, tempo, acaso; quase sempre longe da superfície.
★★★★★★★★★★