Todo casamento tem um quê de jogo e de perigo. Nada pode ser mais redundante para um casal que enfrenta momentos difíceis na relação que saírem os dois, como os jovens apaixonados e inconsequentes que decerto foram um dia, meio sem rumo, à cata de um pretexto para tentar impedir o que já não vai nada bem de esfacelar-se de vez. Relacionamentos são quase sempre pautados por crises, e não é incomum encontrar homens e mulheres que digam serem adeptos de um súbito gelo a fim de que a chama do amor arda outra vez, com mais força. Por baixo de um problema aparentemente banal costuma haver outros, esses, sim, de resolução delicada, e portanto qualquer medida que não contemple mudanças profundas de parte a parte, com direito à investigação minuciosa de questões graves de um passado remoto que teima em voltar sob a forma de ondas de terror, há de ser inócua — e tanto pior se encarada por um único lado, como se o problema não atingisse a ambos. Depois de anos apartados, Ahmad e Marie-Anne reencontram-se, e a partir desse ponto, “O Passado” urde um conto meticuloso sobre a complexidade dos laços entre as pessoas, o peso das escolhas e os ruídos da comunicação. Asghar Farhadi lança mão da memória como elemento a rivalizar com os personagens centrais, marcados por um descompasso que vai muito além das emoções.
Um dos expoentes do novíssimo cinema iraniano, Farhadiapareceu para o mundo com “A Separação” (2011), vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2012, e em “O Passado” continua a esmerilhar as tragédias grandes e pequenas da vida a dois. Enquanto em “O Passado” seu país natal tem clara importância na narrativa, aqui o que vale mesmo é o infinito território que abrange o coração humano, especialmente depois que o afastamento de Ahmad e Marie chega ao fim de um jeito inusitado. Uma cena tão breve quanto vigorosa registra Ahmad no aeroporto Charles de Gaulle, de volta a Paris na sequência de uma longa temporada em Teerã. Ele apanha a bagagem, e do outro lado do terminal, por trás de um vidro grosso, o espera Marie, que tenta chamar-lhe por gestos. Na hora em que afinal se vira, os dois conversam normalmente, e o público se esforça para adivinhar sobre o que falam, até que eles ficam cara a cara. Um divórcio por ser concluído parece ser a razão da viagem de Ahmad, porém à medida que a história vai avançando, o diretor-roteirista esmiúça as verdadeiras motivações do personagem, o que leva ao desapontamento que ancora o eixo do conflito. Marie, uma balconista de farmácia, está comprometida com Samir, o dono de uma lavanderia cuja esposa vegeta após uma malfadada tentativa de suicídio. Com eles também vivem três crianças, com um bebê a caminho.
A menção aos filhos de um e da outra torna o drama mais intenso, com a perspectiva ingênua imiscuindo-se às verdades que os adultos tentam disfarçar. Lucie, a filha mais velha de Marie, demonstra simpatizar mais com Ahmad que gostar do padrasto ou mesmo da mãe, fazendo questão de expor seu desprezo pelo relacionamento deles. Ainda que em aparições bissextas, Pauline Burlet costura os dois núcleos e dá ao longa o aspecto de um mosaico de verdades e imposturas, que alcança sua máxima potência quando, no terceiro ato, Samir faz uma descoberta a respeito de uma série de e-mails enviados por Naïma, a funcionária da lavanderia interpretada por Sabrina Ouazani. Bérénice Bejo, Ali Mosaffa e Tahar Rahim encarnam Marie, Ahmad e Samir como fantasmas do que podem ter sido passado não muito tempo, evocando uma força que age sobre o presente: Ahmad, ainda que tenha se distanciado, carrega a memória do casamento com Marie; ela, por seu turno, está encarcerada entre a urgência de reconstruir sua vida e mágoas com as quais terá de lidar, sem saber se hão de cicatrizar, nem quando. Já Samir enfrenta o dilema ético mais pungente e quiçá invencível: buscar a felicidade com outra mulher ao passo que sua esposa pode ficar para sempre alheada do mundo, por uma atitude de desespero suscitada por ele.
Longe de ser apenas uma história sobre separação e recomeços, “O Passado” é uma reflexão implacável sobre a memória, a culpa e a impossibilidade de escapar dos rastros do que fomos. Às vezes, o passado não passa nunca.
★★★★★★★★★★