Os 5 livros Machado de Assis lia enquanto o Brasil dormia

Os 5 livros Machado de Assis lia enquanto o Brasil dormia

Havia um tempo em que o Brasil adormecia cedo. As luzes se apagavam nas janelas sem pressa, os bondes rangiam no escuro, os telhados arfavam um cansaço invisível. E ele, aquele homem magro, quase translúcido, permanecia aceso, virado para dentro, com a cabeça inclinada sobre Shakespeare, Cervantes, Goethe, Xavier, Stendhal. Não era insônia: era luta. Enquanto o país cochilava na modorra da monarquia, entre sarau e senzala, ele se alimentava de palavras estrangeiras, de ideias impróprias, de angústias não traduzidas. Lia para desafiar a própria margem, para vencer a febre, para escrever o que ainda não era possível escrever.

Hamlet, por exemplo. Machado o lia como quem procura um espelho rachado. Não o drama, mas a hesitação. Essa hesitação que ele plantaria em cada vírgula de Brás Cubas, cada suspiro de Rubião. Shakespeare lhe deu o tempo do pensamento, o solilóquio como dispositivo de revolta. Já Xavier de Maistre, tão pequeno, tão quase ridículo, lhe mostrou que bastava um quarto e uma cadeira para inventar uma viagem, bastava estar preso para ser livre, bastava ironia para existir. E como isso colava em sua vida: funcionário público de dia, cronista invisível à noite, negro, epilético, cético, mal lido e pior compreendido.

De Stendhal, talvez ele herdasse a anatomia do arrivista, o bisturi social. Julien Sorel e seu olhar de vidro atravessando a hipocrisia burguesa. Foi isso que Machado transplantou para a alma da corte tropical, sem precisar nomear nada. E Cervantes? A loucura como método. O riso como filosofia. Machado lia Dom Quixote como quem lê um irmão mais velho e falido, um escritor sem cavalo. E Goethe. Goethe foi o demônio civilizado que lhe cochichou que toda ambição custa a alma. Que um pacto assinado com a inteligência jamais se desfaz.

Esses livros não eram ornamentos. Eram trincheiras. O Brasil dormia e ele lia porque não havia escolha. Ler era não morrer. Escrever viria depois. Ou talvez ao mesmo tempo.

Revista Bula

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