Em 1983, a promessa era outra. O mundo ainda acreditava na vigilância como solução e na tecnologia como trincheira moral. John Badham filmava como quem tentava ordenar o caos por cima: um helicóptero como premissa, a cidade como zona cinzenta, e um homem em suspensão, entre a obediência e a desconfiança. “Trovão Azul” é menos sobre o equipamento e mais sobre o que ele permite. Ou sobre o que ele revela. Nunca foi exatamente um filme sobre a máquina; sempre foi sobre o olhar.
Frank Murphy, vivido por Roy Scheider com um cansaço que não se resolve com sono, não é herói nem cínico. Está entre os dois, deslizando. Sua presença é silenciosa, mesmo quando comanda a aeronave mais barulhenta da cidade. Tudo nele parece conter uma desistência controlada. Um piloto com traumas militares, um oficial com ética ambígua, um homem que olha demais. A obsessão com o relógio, logo nas primeiras cenas, não é aleatória. Ele mede o tempo porque sabe o que o tempo custa. E porque desconfia que já está em dívida.
Daniel Stern, como Lymangood, é mais jovem, mais rápido e menos preparado. Há ternura na relação entre os dois, mas não a ternura idealizada de duplas de ação. A deles é funcional, precária, feita de respiros cômicos que aliviam, mas não amenizam. São dois homens tentando se manter úteis dentro de uma engrenagem que não os quer pensantes. Quando começam a observar demais, quando veem o que não deviam, tudo se move.
É aí que o filme muda de tom. A cidade se abre em camadas: os bairros, as janelas, os corpos filmados através das paredes. “Grande Irmão” é o apelido do sistema, não por acaso. A referência a Orwell é óbvia, mas não gratuita. O helicóptero enxerga demais. E quem enxerga demais precisa ser eliminado. O roteiro de Dan O’Bannon e Don Jakoby é claro nisso. Saber, aqui, é um crime. Ver é um risco. Lembrar é uma sentença.
A entrada de Malcolm McDowell como o coronel Cochrane marca o deslocamento da trama. McDowell carrega um histórico de personagens perigosos, e “Trovão Azul” sabe disso. Mas não faz dele um vilão caricato. Sua frieza é técnica. Cochrane não mata por prazer — mata por planejamento. A ameaça que representa é mais insidiosa: é a do oficial que entende a máquina como extensão da autoridade. Seu passado no Vietnã não é decorativo. Serve para explicar a familiaridade com a morte sistemática, com o poder aéreo usado como vigilância e punição.
A comparação com “Laranja Mecânica” aparece — inevitável, dada a trajetória do ator. Mas Cochrane é mais contido, mais eficiente, mais aceito. A psicopatia é institucional. Está nos relatórios, nas justificativas, nas reuniões. Ele não precisa gritar. Apenas aponta. O inimigo é interno. E está sempre sendo vigiado.
Os voos entre prédios, as perseguições aéreas, os loops em alta velocidade são apenas o invólucro. O miolo é outro. É sobre poder. E sobre quem o observa sendo usado. Quando Murphy percebe que está cercado, isolado, sem para onde voar, a cidade revela o que sempre foi: uma grade invisível. O céu é aberto, mas a rota é estreita. As vias de fuga se estreitam. A vigilância não protege; condiciona.
A sequência final, com sua longa perseguição e resolução abrupta, tem algo de desgaste. A coreografia das cenas, embora tecnicamente eficiente, envelheceu. Mas o espírito sobrevive. A tensão entre o homem e a máquina continua atual. A desconfiança do Estado como observador absoluto, também. E a ideia de que aquilo que voa sobre nós nem sempre nos protege — essa nunca deixou de ser atual.
A trilha sonora, com ecos da guerra e referências a “Apocalypse Now”, reforça a herança bélica de tudo aquilo. O som, como no início, fecha o ciclo. É um som que fala mais do que a imagem. Um som que permanece. A trilha de Carmine Coppola ressoa menos como fundo e mais como comentário. Ela narra sem palavras. E acusa.
Quarenta anos depois, “Trovão Azul” ainda sabe onde mirar. Seu valor não está nos efeitos ou na adrenalina, mas naquilo que carrega em silêncio: a desconfiança, o trauma, a falência de um certo otimismo tecnológico. É um filme sobre o que não devia ter sido filmado. E que, no entanto, foi. É sobre o que não queríamos lembrar. Mas lembramos.
Não é um filme perfeito. E talvez nem precise ser. Porque há algo em sua imperfeição que o torna mais honesto. Mais próximo daquilo que ele tenta denunciar. Um sistema que parece eficiente, mas treme nas bordas. Uma estrutura que se pretende neutra, mas revela, nos detalhes, sua vocação para o controle.
Assistir a ele hoje é como revisitar uma lembrança incômoda. Não só pelo enredo, mas pelo espelho que nos devolve. A tecnologia evoluiu, os helicópteros mudaram, os sensores ficaram mais sutis. Mas o impulso de olhar demais, de monitorar o outro como forma de dominar o presente — esse continua ativo. E provavelmente continuará.
No fim, o que se vê é menos importante do que aquilo que se aprende a ignorar. E “Trovão Azul”, com todas as suas marcas do tempo, continua sendo um filme sobre isso: sobre o perigo de acostumar-se a ver tudo, até que nada mais pareça grave. Até que tudo pareça normal.
E então, um dia, o som volta. E dessa vez, é impossível fingir que não se ouviu.
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