143 mil reais: a história do livro mais caro do Brasil (e da tragédia que o acompanha)

143 mil reais: a história do livro mais caro do Brasil (e da tragédia que o acompanha)

Há livros que não terminam ao serem fechados; continuam latejando como cicatriz aberta na memória de um país. Talvez por isso alguém tenha pago 143 mil reais por um exemplar raro da primeira edição de “Os Sertões”, obra que Euclides da Cunha escreveu sem imaginar que ela se tornaria, mais de um século depois, o livro mais caro já vendido no Brasil.

Quando Euclides da Cunha chegou ao sertão, em 1897, não trazia nas mãos nem papel nem caneta, mas armas e o olhar assustado de um homem que logo perceberia seu próprio engano. Não era exatamente escritor, nem exatamente soldado, jornalista por acidente talvez; estava ali, enviado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, como correspondente numa guerra que ninguém conseguia entender direito. Canudos parecia longe demais, perdida num canto escuro da Bahia, onde o Brasil se esquecia de existir. Um Brasil feito de areia seca, de sol amargo, de fome, silêncio e homens invisíveis.

A guerra, porém, nunca foi o que Euclides imaginara. Logo percebeu que não se tratava de conflito simples, rebelião comum, coisa passageira. Era algo maior, mais antigo e mais fundo que isso. Ao longo dos meses, Euclides acumulou impressões demais, horror demais, dúvidas demais. Voltou do sertão ferido por um outro tipo de bala, uma bala feita de palavras, ideias que queimavam sua consciência como ferida que não fecha.

Exemplar histórico da primeira edição de Os Sertões, de Euclides da Cunha, com correções manuscritas feitas pelo autor, vendido em leilão por R$ 143 mil em dezembro de 2021

Ao voltar ao Rio, Euclides demorou anos até dar sentido ao que vira, se é que sentido havia. Começou então a escrever “Os Sertões”, lentamente, cheio de hesitações e remorsos, textos e notas que acumulavam-se caóticas. Tinha pressa e paciência ao mesmo tempo, porque sabia que algo ali escapava entre os dedos, um país inteiro escorrendo como areia. Quando finalmente publicou o livro, em 1902, pela editora Laemmert, o país estranhou o volume áspero, denso, dividido em três partes duras e áridas: “A terra”, “O homem” e “A luta”.

Na primeira parte, a terra, Euclides tenta descrever o cenário que viu com olhos confusos, misturando ciência e poesia em doses iguais. A seca não é apenas seca, é catástrofe recorrente, é tragédia prevista, é rotina cruel que define vidas antes mesmo que elas comecem. O solo árido, a vegetação sofrida, a fome constante; não há metáfora que disfarce esse drama. Mas Euclides tenta, hesita, tropeça na própria linguagem, sempre dividida entre erudição científica e coloquialidade bruta do sertanejo. É estilo difícil, torturado, conflituoso, mas exatamente por isso honesto.

No homem, a segunda parte, a dor aumenta. Aqui, o determinismo de Euclides é duro, injusto. Influenciado pela época, escreve sobre raça, sobre embranquecimento, sobre a inferioridade das misturas étnicas. É trecho desconfortável, duro de aceitar hoje, mas é honesto também em sua falha. Euclides se entrega à tentativa desesperada de entender por que o sertanejo resiste, apesar de tudo. Descreve o povo com uma admiração ambivalente, reconhecendo sua força, enquanto afirma sua inevitável derrota diante da civilização. Contradições dolorosas são parte do livro, porque são parte do homem que o escreveu.

Na terceira parte, a luta, o jornalista vence o cientista. É aqui que Euclides expõe a guerra em detalhes quase insuportáveis. Quatro expedições militares contra Canudos são narradas com minúcia de quem não quer esquecer. O horror ganha forma definitiva, rostos concretos, imagens que permanecem. O sangue, a fome, as tropas, o fanatismo religioso, tudo ganha contorno nítido demais. Aqui Euclides já não disfarça mais: é o jornalista indignado, denunciando o absurdo que testemunhou, tão absurdo que parece impossível ter sido real.

E o livro, terminado em meio a angústias, chega às livrarias sem muito alarde. Mil exemplares apenas, um lançamento tímido para uma obra que, décadas depois, seria celebrada como monumento literário brasileiro. E aqui está o mistério, como um livro que começou sem grandes pretensões tornou-se marco absoluto da literatura brasileira, definindo gêneros e inaugurando a tradição do livro-reportagem no país?

Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, morto tragicamente em 1909 após atacar Dilermando de Assis, amante de sua esposa, num episódio que abalou a sociedade brasileira

Mas Euclides não viveria muito para assistir plenamente ao reconhecimento tardio da sua obra-prima. Em 1909, tomado por um ciúme desesperado, armado de um revólver, invadiu a casa onde estava Dilermando de Assis, jovem amante de sua esposa Anna Emília (Saninha). Aos gritos — “Vim para matar ou morrer!” — abriu fogo imediatamente contra o cadete, ferindo-o gravemente no peito. Dilermando, então desarmado, tentou ainda agarrar a arma do agressor, mas recebeu outro tiro certeiro. Caído, viu o irmão Dinorah tentar intervir, sendo atingido por Euclides com um tiro na coluna vertebral. No momento, Dinorah não sentiu as consequências do ferimento, chegando até mesmo a jogar futebol pelo Botafogo dias depois, mas a lesão o levaria à invalidez e, doze anos mais tarde, ao suicídio, desesperado por sua condição. Dilermando, ferido e no chão, conseguiu pegar seu revólver e atirou primeiro contra a parede, tentando assustar o escritor, e gritou, segundo seu próprio relato anos depois: “Fuja, dr. Euclides, pois não lhe quero matar!”. Mas Euclides, dominado pela obsessão, não parou de atirar. Somente então, em legítima defesa, Dilermando alvejou Euclides, atingindo-o fatalmente no pulmão. O escritor tombou junto à escada, balbuciando frases desconexas: “Bandidos… Odeio… Honra…”. Foi o fim brutal e trágico de um homem complexo, que carregava dentro de si tantas guerras quanto as que descrevera.

Dilermando foi execrado publicamente pelo resto da vida. Chamado de assassino, perseguido pela imprensa impiedosa, sua existência tornou-se um martírio constante. Mesmo absolvido em julgamento, nunca teve paz.

Anos mais tarde, Dilermando enfrentaria outra violência, numa espécie de repetição cruel do mesmo drama: foi atacado pelo filho homônimo de Euclides, que buscava vingar a morte do pai. Novamente baleado, novamente levado à desesperada reação de legítima defesa, Dilermando matou também o filho, num desfecho sombrio e terrível que a justiça mais uma vez reconheceu como inevitável. Absolvido, carregou, até o fim de seus dias, o estigma insuportável de ter ceifado não uma, mas duas vidas marcadas pela genialidade e pela tragédia.

Mais de um século depois, em dezembro de 2021, um exemplar da primeira edição de “Os Sertões”, bancado originalmente pelo próprio Euclides e limitado a apenas mil cópias, tornou-se o livro mais caro já vendido no Brasil. Repleto de cerca de oitenta correções feitas à mão pelo autor, esse volume raro conservou sua capa original em brochura e foi guardado num estojo especial, aumentando sua preciosidade. O leilão, realizado pela Livraria Letra Viva no Rio de Janeiro, começou tímido, com lances iniciais em torno de mil reais, mas rapidamente se transformou numa intensa disputa que superou todas as expectativas, atingindo impressionantes 143 mil reais após mais de oitenta ofertas consecutivas. Quem pagou esse valor recorde talvez soubesse que não adquiria somente um exemplar antigo ou uma relíquia literária, mas sim um testemunho vivo das angústias, das dúvidas e das correções obsessivas do próprio Euclides, um objeto único capaz de aproximar-se, ainda que simbolicamente, da mente tumultuada do autor que duvidou até o último instante de si mesmo e da história dolorosa que contava ao país.

O valor real de “Os Sertões” não é o do leilão, nem mesmo o da raridade. O valor está na coragem do autor em expor-se, em mostrar um Brasil que ninguém queria ver. Um Brasil dividido, violento, injusto; mas também um país resistente, forte, insistindo em sobreviver. O livro permanece atual justamente por não resolver essas tensões, por mantê-las abertas, expostas, sem oferecer respostas fáceis.

E é aí que está sua grandeza literária. Euclides criou uma obra maior do que pretendia exatamente porque aceitou suas limitações, suas angústias, suas contradições internas. Por isso a leitura é difícil, penosa, necessária. Porque ao fechar o livro, a sensação que fica não é de término, mas de uma ferida exposta, ainda aberta. É incômodo perceber que, depois de tanto tempo, a guerra descrita por Euclides continua em nós. A luta, a incompreensão, a injustiça, tudo persiste sob novas formas, como se o sertão jamais deixasse realmente de existir.

Revista Bula

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