Premiado com o Oscar de Melhor Filme, o retrato mais preciso do jornalismo investigativo contemporâneo está na Netflix Divulgação / Open Road Films (II)

Premiado com o Oscar de Melhor Filme, o retrato mais preciso do jornalismo investigativo contemporâneo está na Netflix

O que impressiona em “Spotlight: Segredos Revelados” não é o que ele revela, mas a forma como o revela. O roteiro não busca impacto, busca clareza. Tom McCarthy dirige com o cuidado de quem compreende que há histórias que não devem ser dramatizadas — porque já foram violadas o suficiente. Não há filtros coloridos, música crescente ou linguagem de escândalo. Há uma câmera que observa, e uma redação que insiste. E só isso já é mais do que a maioria dos filmes se permite.

A trama é baseada no caso real que abalou a Igreja Católica e expôs uma teia de encobrimentos dentro da Arquidiocese de Boston. A equipe Spotlight, setor investigativo do jornal “Boston Globe”, mergulhou em uma apuração meticulosa que envolvia centenas de padres abusadores, múltiplas vítimas, décadas de silêncio. E, mais do que tudo, um sistema que sabia — e preferiu não agir. É esse tempo entre o saber e o calar que o filme expõe com uma serenidade brutal.

Michael Keaton interpreta Walter “Robby” Robinson, editor da equipe investigativa, com uma contenção que confere humanidade ao cansaço moral do personagem. Mark Ruffalo, como Michael Rezendes, encontra a inquietação certa para dar corpo à urgência da apuração sem transformar o papel em símbolo. Rachel McAdams, Brian d’Arcy James e Liev Schreiber compõem um núcleo de jornalistas que não precisam gritar para ter voz. Eles apenas fazem o trabalho. Checam, ligam, escutam. E o filme respeita esse ritmo — o do jornalismo real, que muitas vezes avança em silêncio.

McCarthy filma como quem entende que não está lidando com um tema — mas com vidas. Por isso evita qualquer aproximação estética do trauma. A denúncia existe, mas ela surge pela acumulação de fatos, de entrevistas, de papéis xerocados. O roteiro, escrito em parceria com Josh Singer, constrói a tensão a partir da insistência. O monstro nunca aparece — porque o monstro, aqui, é a normalidade. São as igrejas vazias, os advogados bem-intencionados, as famílias que preferem não falar. Tudo isso forma o tecido que permitiu que o abuso se repetisse por anos.

“Spotlight” entende o que muitos filmes esquecem: que o horror não precisa ser encenado para ser sentido. A escolha estética é de sobriedade radical. A trilha sonora mal existe. A fotografia evita contraste. A montagem respeita o tempo dos diálogos e das pausas. Essa recusa ao espetáculo transforma a investigação num ato de resistência — contra a pressa, contra o esquecimento, contra a anestesia moral. Quando os jornalistas finalmente ligam os pontos, o espectador não sente vitória. Sente desconforto. Porque o que vem à tona não é algo escondido. É algo conhecido, mas ignorado. E isso é sempre mais difícil de aceitar.

O filme tem consciência de sua responsabilidade ética. Não há momentos de heroísmo encenado. Não há personagens com frases prontas ou posturas messiânicas. Há trabalhadores. E isso importa. Porque essa escolha reforça o que há de mais contundente em “Spotlight”: a convicção de que o jornalismo, quando feito com rigor, ainda é capaz de enfrentar o que muitos preferem deixar intocado. E que isso não acontece com brilhantismo, mas com perseverança.

Há algo de desconfortável, também, no retrato da própria imprensa. O filme não omite que o próprio “Globe” recebeu denúncias anos antes e preferiu não seguir com elas. Não inocenta seus personagens. Mostra que até quem apura pode, antes, ter omitido. E essa autocrítica dá ao filme uma dimensão rara — ele não é apenas denúncia, é exame de consciência. O peso das omissões é compartilhado. E é por isso que, quando o telefone começa a tocar no final, com dezenas de vítimas finalmente dispostas a contar suas histórias, o gesto de ouvir passa a valer tanto quanto o de revelar.

“Spotlight” também fala sobre estruturas — da Igreja, da mídia, do Judiciário. Mostra como o silêncio é sustentado não só pelo medo, mas por vínculos. Há padres que são amigos de juízes. Promotores que frequentam os mesmos jantares. A igreja em Boston não é apenas instituição — é tecido urbano. E é esse entrelaçamento que dificulta o enfrentamento. Porque não se trata apenas de enfrentar o crime, mas o constrangimento social de confrontar quem todos consideravam inquestionável.

É também um filme sobre o tempo. Sobre o tempo da escuta, o tempo da apuração, o tempo que se leva até que uma história esteja madura o suficiente para ser publicada. Num cinema cada vez mais movido pela urgência do impacto imediato, “Spotlight” insiste no tempo da maturação. Mostra jornalistas errando, voltando atrás, esperando confirmação. E esse compromisso com o tempo verdadeiro dos fatos é parte da sua autoridade narrativa. Não há atalhos. Nem pressa.

Anos depois de sua estreia, “Spotlight” permanece atual não apenas pelo tema, mas pelo método. Ele não apenas denuncia — ele ensina como se investiga. É um filme que pode ser mostrado em salas de aula, mas que nunca soa pedagógico. A ética que o move não está em suas falas, mas em suas escolhas de direção, montagem, atuação. Um filme que não se coloca acima do seu assunto, mas ao lado dele. E que entende que, em certos casos, dizer a verdade é menos sobre coragem do que sobre insistência.

Ao final, não há catarse. O telefone toca. E continua tocando. Não há julgamento. Não há punição. Há, apenas, um jornal impresso — com data, manchete e nomes. Não é pouco. É o que se pode fazer. E é o que se precisa fazer, enquanto ainda há gente disposta a escutar. “Spotlight” é sobre isso: o que se faz com o que se sabe. E o que custa deixar isso para depois.

Filme: Spotlight: Segredos Revelados
Diretor: Tom McCarthy
Ano: 2015
Gênero: Biografia/Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★